Ele, o juiz imparcial, visto por um advogado

*Roberto Serra da Silva Maia

Na atualidade, nos defrontamos com uma espécie de polarização ideológica, escondida sobre os arquétipos do espectro político de esquerda e direita, o que vem propagando uma certa divisão da sociedade em polos antagônicos que se dividem e se combatem em uma guerra ideológica em que se sobressaem a superficialidade e a intolerância às ideias divergentes.

Por isso, começo dissertando na primeira pessoa do singular, partindo do pressuposto de que a impessoalidade recomendada pelos teóricos na abordagem de um texto acadêmico torna-o frio e genérico, e de não manter qualquer vinculação (ideológica) de “esquerda” ou de “direita”. Escrevo na qualidade de operador do direito, como advogado atuante há mais de 20 anos na profissão – a maioria deles na esfera criminal –, cujo labor foi compartilhado por quase 10 anos de assessoramento à 9ª Procuradoria de Justiça do Estado de Goiás em mais de 3 mil processos criminais, e com décadas de atuação no magistério universitário em Direito Penal e Processo Penal no curso de graduação e pós-graduação.

Percebo que nos dias atuais, a razão vem sendo sistematicamente deixada de lado como algo de somenos, sendo todo e qualquer acontecimento não apenas um mero acontecimento; mas um grande acontecimento!

E, num momento como esse, escrever um texto ou artigo é um trabalho de extrema dificuldade; porém, muitas vezes necessário. Necessário porque uma reflexão representa um especial momento diante dos mistérios e das perplexidades da vida.

Preocupa-me, e tenho certeza de que também a todos os operadores do direito, notadamente criminal, a divulgação e o julgamento midiático imposto pelos meios de comunicação. Preocupa-me a condenação pública gerada pela opinião formada; preocupa-me a validação plena de provas ilícitas, inobstante seu efetivo grau de confiabilidade ou legalidade. Preocupa-me o completo afastamento do constitucional princípio da presunção da inocência. Preocupa-me, especialmente, o grau de isenção de um juiz.

Especialmente nos últimos dias, fomos todos colhidos pela divulgação na imprensa de possíveis conversas mantidas em aplicativos reservados de comunicação por membros do Ministério Público e o Judiciário, isto é, de procuradores do Ministério Público Federal (MPF) – titulares de determinadas ações penais – com o juiz – que atuava como dirigente procedimental nas aludidas ações penais –, sobre estratégias jurídico-políticas na chamada “Operação Lava Jato”.

Não se pode aceitar, com naturalidade, eventuais trocas de mensagens particulares e reservadas sobre estratégias acerca de determinado processo entre aquele que acusa e aquele que decide, sob pena deste acabar por relegar seu papel de julgador para se tornar acusador, afinal, a Justiça Criminal é compreendida a partir de um tripé de sujeitos processuais independentes, onde o Ministério Público acusa, o acusado exerce o seu direito de defesa, e o Judiciário julga.

No julgamento do “Habeas Corpus” n. 509.030/RJ, envolvendo a prisão do ex-Presidente da República Michel Temer, o ministro Néfi Cordeiro, do Superior Tribunal de Justiça, chegou a assentar que “o juiz criminal deve conduzir o processo pela lei e Constituição, com imparcialidade”, podendo esta característica do magistrado ser entendida como útil valor social, de ideal a ser perseguido, ao menos como forma de controle do julgador.

Muito embora a “imparcialidade” do juiz não esteja expressamente prevista na nossa Constituição Federal, trata-se de um princípio constitucional de estruturação do Poder Judiciário e um direito fundamental constitucional conferido a todos aqueles que participam da relação jurídica processual, o qual mantém previsão em preceitos contidos em Tratados ou Pactos internacionais incorporados no ordenamento jurídico brasileiro, como por exemplo, no art. 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e no art. 14, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

A “imparcialidade” judicial configura-se, portanto, como um dos elementos imanente a todo e qualquer processo, sendo que nela radica uma das mais importantes garantias para a prolação de uma tutela jurisdicional justa e equânime.

Esses acontecimentos acabaram me trazendo à lembrança uma obra que marcou muito na graduação na década de 1990, onde o jurista italiano Piero Calamandrei viveu a figura do advogado e do juiz, enfrentando-se na luta diária pela justiça. Refiro-me ao “elogio dei giudici scritto da um avvocato”, traduzido no Brasil como “eles, os juízes, vistos pós nós, os advogados”.

Piero Calamandrei foi um jurista, advogado e professor italiano que viveu em Florença até 1956, quando faleceu aos 67 anos de idade. Ao lado de Francesco Carnelutti e Enrico Redenti, foi um dos principais inspiradores do Código de Processo Civil Italiano de 1940.

Para Calamandrei, o acusado deverá acreditar que terá um resultado justo nas razões defendidas por ele e, principalmente, acreditar que encontrará um magistrado que, imparcial, entenderá suas razões e lhe dará a almejada justiça. A imparcialidade do juiz seria, na sua visão, a “virtude suprema do juiz”.

No Estado contemporâneo, a garantia de que o processo será conduzido por um juiz imparcial, ou a necessidade de que o julgador se situe como terceiro que irá valorar interesses alheios, é da essência da atividade jurisdicional.

É necessário que, no limitar do processo, tenham as partes a certeza de que, como um dos atributos da cidadania, o responsável pela solução da causa em julgamento permanecerá ao menos equidistante dos dois lados.

Eis a concepção “do juiz imparcial, visto por um advogado”. 

*Roberto Serra da Silva Maia é advogado e professor efetivo do Curso de Direito Penal, Processo Penal e Prática Jurídica da PUC-GO