Divórcio post mortem e suas implicações no ordenamento jurídico brasileiro

Daniela Rosa Pereira Motta Fedato*

No direito pátrio, por vezes, algumas premissas são tidas como absolutas, mas ainda que sejam consideradas como tais, estas, eventualmente, precisam ser revistas e encaradas sob uma nova perspectiva.

Nesse sentido, à luz de entendimentos proferidos pelos Tribunais e, de forma mais recente pelo Superior Tribunal de Justiça, demonstrou-se um possível prejuízo causado às partes nas ações de divórcio em que ocorreu a morte de um dos cônjuges, tendo em vista que a decretação hermética e irrefletida da perda do objeto da ação, encontrando-se esta em curso, acomete a vontade das partes e, por conseguinte, fere o princípio da autonomia da vontade na dissolução da sociedade conjugal.

O artigo 1.571 do Código Civil de 2002 enuncia que a sociedade conjugal termina pela morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pela separação judicial ou pelo divórcio.

No campo do direito processual civil, tanto a doutrina, quanto a jurisprudência entendem que a superveniência do óbito de um dos consortes na pendência da ação de divórcio importa imediatamente a perda do objeto da demanda, a extinção imediata do casamento e por fim, a extinção do processo sem resolução de mérito, nos termos do artigo 485, inciso IV do CPC. Ainda que tenha sido tenha sido proferida a sentença, antes do seu trânsito em julgado, o cônjuge sobrevivente adquire o estado civil de viúvo. E o casamento se dissolverá pela morte.

No entanto, na seara do direito material, o próprio dispositivo não estabelece hierarquia entre a morte e o divórcio como causas da dissolução do matrimônio, não de tal forma, em que a primeira comprometeria a segunda.

Levando-se em conta caráter potestativo do instituto do divórcio, entende-se que o divórcio não admite contestação ou oposição, sendo concedido apenas com o simples pedido das partes.

Sendo assim, o pedido do divórcio em si, não encontra óbice algum para ser concedido de plano. O que fica explicitado por meio dos recentes entendimentos de concessão de tutela de evidência, julgando-se de forma antecipada o divórcio.

Por meio do instituto do divórcio post mortem há a possibilidade de determinação do divórcio das partes, dissolvendo o casamento, mesmo após a morte de um dos cônjuges, sendo este pautado no princípio da autonomia da vontade.

O princípio da autonomia da vontade é um dos fundamentos do código civil de 2002. Afinal, a vontade rege os negócios jurídicos e, por consequência, é fundamento para o direito contratual pátrio.

Sob a perspectiva contratual do casamento, não há como falar em contratos sem mencionar o referido princípio, pois este se manifesta sob duas vertentes: a liberdade de contratar e a liberdade contratual. A primeira se refere à autonomia que as partes têm de contratar com quem entenderem; já a liberdade contratual significa a autonomia que as partes têm de definir o conteúdo do contrato.

A autora Ligia Bertaggia de Almeida Costa, em seu livro “40 anos da Lei do Divórcio” (COSTA, 2018, p. 126), ao mencionar as mudanças ocorridas com a EC 66/2010, afirma:

Prima-se pela liberdade, pela autonomia privada e pelo poder que cada pessoa tem de reger seus interesses, suas escolhas, e suas vontades.

(…)

Com isso, vê-se consagrado o princípio da liberdade, não havendo mais imposição ou restrição, já que é livre o poder de escolha quanto à manutenção ou não do casamento. Consequentemente, são também respeitadas a autonomia da vontade e a dignidade da pessoa humana.

Desta forma, levando-se em conta o princípio da autonomia da vontade, da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais julgou em 2018, a Apelação Cível n. 1.0000.17.071266-5/001, o primeiro caso em que foi apontado o aludido instituto.

No referido julgado, os herdeiros pleiteavam a vontade do pai de se ver divorciado. Divórcio esse que só não foi realizado por morosidade e omissão do judiciário em conceder tutela antecipada, declarando desde logo os efeitos do divórcio.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que a morte do cônjuge no curso na ação não acarretaria a perda do objeto da ação, já que restou caracterizada a manifesta vontade dos cônjuges de se divorciarem, pendente apenas a homologação, a qual não ocorreu por omissão do juízo.

Naquele caso, o requerente pleiteou a concessão do divórcio em tutela de evidência, nos moldes do artigo 311, IV do CPC, devendo ser concedida quando a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo.

Nesse ínterim, por infortúnio, o requerente faleceu, e então o espólio alegando a omissão do juízo em homologar o divórcio, foi considerado parte legítima para continuar a ação e requerer a declaração do fim do casamento do de cujus pelo divórcio, já que exaurido o exercício do direito em vida, pelo cônjuge falecido.

Momento em que o julgador entendeu que a ação não perdeu o objeto, pois o pedido de divórcio ainda que direito exclusivo dos cônjuges, foi exercido pessoalmente pelas partes, que requereram, ambas, a decretação do divórcio, enquanto dele plenamente titulares exclusivos e enquanto puderam manifestar-se.

Ainda, cumpre mencionar o recente REsp n. 2007285 – MG (2022/0172895-2), publicado no dia 14/04/2023, de Relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, por meio do qual, restou entendida a sucessão processual do falecido em ação de divórcio, uma vez que, a premissa “a morte soluciona tudo”, como já previa o brocardo romano mors omnia solvit não se aplica às situações nas quais há manifestação de vontade expressa de uma das partes ao divórcio, que só não se realiza em virtude de sua morte.

A morte de um dos cônjuges no curso do processo não acarretaria, portanto, a perda do objeto da ação quando existente manifestação afirmativa de qualquer um deles, estando pendente apenas a homologação judicial do pedido, restando reconhecido pelo Ministro a possibilidade de decretação do divórcio post mortem, quando uma das partes envolvidas falece antes da sentença.

Assim, da análise dos entendimentos jurisprudenciais bem como, do REsp n. 2007285 – MG (2022/0172895-2), pode depreender-se três requisitos para o a concessão do divórcio post mortem: a) a demonstração do interesse dos herdeiros para a sucessão processual; b) ter sido o direito exercido pessoalmente pelas partes e, por fim, c) que restasse configurada a vontade do de cujus em divorciar-se em vida.

Ora, não há dúvida de que a ação de divórcio compete somente aos cônjuges com exclusividade, conforme previsão do Código Civil, em seu artigo 1.582. Dessa forma, não se admite, em tese, a sucessão processual nas ações de divórcio.

Todavia, o interesse dos herdeiros na sucessão processual, conforme o entendimento do Tribunal de Minas Gerais está intimamente ligado ao próprio mérito da ação, haja vista que o relator entendeu que este restou demonstrado na definição dos limites subjetivos e objetivos da ação de inventário, já que com a morte de um dos cônjuges, o espólio é intimado a relacionar os herdeiros, indicar a existência de cônjuge supérstite e arrolar todos os bens que pertenciam ao de cujus.

É importante destacar que os presentes requisitos devem ser analisados de forma cumulativa. Já que, sob uma perspectiva isolada de cada um destes, não bastaria o simples interesse dos herdeiros para a sucessão processual, ou apenas o direito ter sido exercido pessoalmente pelas partes, e ainda que configurada a vontade do de cujus em divorciar-se em vida, os herdeiros, deveriam de igual forma, suceder o interesse falecido, caso não haja interesse, a ação perderia um dos seus pressupostos processuais.

Quanto ao momento da homologação do pedido de divórcio, tendo em vista que esta se dá em momento posterior, o magistrado deverá homologar o pedido com efeitos retroativos à data em que foi exercido o direito potestativo de titularidade, qual seja, o momento de protocolo da ação.

Assim, reconhecida em nosso ordenamento jurídico a possibilidade de se decretar o divórcio post mortem, serão necessários dois procedimentos distintos: o divórcio, a ser processado no juízo de família, e o inventário no juízo sucessório, haja vista que, pelo Princípio de Saisine, os bens do falecido transmitem-se aos herdeiros, imediatamente, no momento de sua morte, respeitando-se o efeito retroativo da sentença que homologou o divórcio concedido após a morte.

*Daniela Rosa Pereira Motta Fedato é advogada, especialista em Direito de Família, Direito das Sucessões e Planejamento Sucessório, no Daniela Motta Advocacia. Associada ao Instituto de Estudos Avançados em Direito e membro do Núcleo de Direito de Família e Sucessões. Seu e-mail para contato é danielamotta.advocacia@gmail.com. Está no Instagram como @danielamottaadv