Marcella Leite de Andrade*
Para aqueles que diariamente enfrentam a lida dos processos judiciais, não é incomum esbarrar em ações que envolvem divórcio, partilha do patrimônio e direitos de meação de bens atrelados a empresas. Da mesma forma que o assunto se torna cada vez mais corriqueiro perante o Poder Judiciário, a diversidade de pedidos que são feitos com o objetivo de afetação da pessoa jurídica também o é.
Pode-se dizer que em cada petição inicial que envolve o assunto, o advogado que representa a parte adversa pode se deparar com uma infinidade de pedidos que são apresentados ainda em tutela de urgência, com o objetivo de alcançar os frutos e lucros advindos da empresa e, não bastante, até mesmo para que os bens da pessoa jurídica sejam indisponibilizados mediante ordem judicial antes de se ouvir a outra parte.
Sob o enfoque do regime de bens geral – comunhão parcial de bens -, tem-se que os bens adquiridos durante o casamento ou união estável são submetidos à divisão, sendo certo que os efeitos do regime de bens são interrompidos a partir do momento em que o casal se separa de fato. Com a separação de fato ocorre o fim da relação conjugal, cessando os efeitos também sobre os aspectos patrimoniais.
Não obstante tais diretrizes serem premissas básicas no âmbito do direito de família, o assunto se torna um pouco mais complexo quando o processo de divórcio envolve empresários e, por conseguinte, participação societárias.
A complexidade enfrentada em divórcios dessa natureza diz respeito às sociedades empresárias e a dificuldade sociocultural de compreender que as empresas são diferentes das pessoas físicas que as integram.
Assim, recordar os fundamentos da autonomia da personalidade jurídica das empresas sempre deverá ser o ponto de partida da discussão, que levará à conclusão lógica da não comunicabilidade dos bens da empresa quando um dos sócios finda a relação conjugal.
Isso quer dizer que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, sendo a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos. A propósito, é essa a previsão do artigo 49-A do Código Civil.
O preceito básico se fundamenta na necessária proteção à função social da pessoa jurídica, seu bom funcionamento e a segurança jurídica da atividade, que seria inviabilizada pela confusão patrimonial/jurídica entre a empresa e seus sócios, caso não fossem distintas.
Assim, a vida particular e os bens do sócio em nada interferem na pessoa jurídica, a qual detém patrimônio autônomo e diverso de seus integrantes, não podendo ser afetada por questões desconexas à atividade empresarial, com exceção da hipótese prevista em lei de desconsideração da personalidade jurídica em casos de abuso desta por parte dos sócios.
Todavia, apesar de a empresa e seus bens não poderem ser afetados na ocasião do divórcio, as quotas sociais, por possuírem valor econômico e pertencerem à pessoa física do sócio, são partilháveis, caso compõem o patrimônio comum do casal.
Uma outra problemática que envolve a divisão de quotas societárias motivada pelo divórcio é a vedação de terceiros ingressarem na sociedade sem a anuência dos sócios, uma vez que a sociedade limitada é uma sociedade de pessoas, com natureza personalista. Isto significa dizer que o componente primordial desse tipo de sociedade é a confiança entre os sócios, o que enseja o impedimento da entrada de novo sócio sem o consentimento dos outros.
Daí porque, na hipótese de divórcio ou dissolução de união estável de um sócio da empresa que compõe o quadro societário, a partilha dos bens do antigo casal não alcança a possibilidade de entrada do ex-cônjuge na sociedade empresarial.
Portanto, se existe vedação na entrada do cônjuge não sócio, deve-se haver a partilha do valor representativo das quotas sociais, que será apurado mediante apuração de haveres, procedimento apropriado para se chegar ao valor das quotas sociais na época em que ocorreu a efetiva separação de fato do casal.
Sendo os direitos sobre as quotas partilháveis, naturalmente se chegou à discussão se há a comunicabilidade da valorização das quotas sociais de sociedades empresárias adquiridas antes da relação conjugal. Ou seja, se a valorização propriamente dita desse bem, ainda que particular, deve ou não ser partilhado após o divórcio.
O debate foi levado ao Tribunal Superior, cujo Superior Tribunal de Justiça manifestou no sentido de que “as quotas ou ações recebidas em decorrência da capitalização de reservas e lucros constituem produto da sociedade empresarial, pois incrementam o capital social com o remanejamento dos valores contábeis da empresa, em consequência da própria atividade empresarial. Portanto, não constituem frutos do bem particular do consorte, motivo pela qual, não integram o rol de bens comunicáveis quando da dissolução da sociedade familiar” (REsp 1595775/AP).
Desse modo, entende-se que a valorização das quotas decorre de um fenômeno econômico, dispensando o esforço laboral da pessoa do sócio detentor, de forma que não entra na partilha de bens.
Sabendo que o cônjuge não sócio não pode ingressar na sociedade, além da incontestável demora na apuração dos haveres das quotas societárias que lhe é de direito (bens comunicáveis), surge a preocupação quanto ao direito que os cônjuges não empresários terão de imediato.
Nesse aspecto, o art. 1.027 do Código Civil traz a previsão de que o cônjuge separado concorre à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade.
No entanto, fato é que a distribuição de lucro só ocorre quando os sócios deliberarem, sendo plenamente normal que muitas empresas não adotem o procedimento, seja porque preferem reinvestir na empresa, por não estarem consolidadas no mercado e precisarem manter o foco no processo de expansão ou até mesmo por problemas financeiros.
Nesses casos, o lucro não distribuído no exercício contábil consiste em produto da sociedade que integra o seu acervo próprio e, por consequência, distinto do de seus sócios, pois não configura acréscimo patrimonial a eles, ficando retidos para investimento da empresa.
A propósito do assunto, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu em sede do REsp nº 1.595.775/AP, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no sentido de que a quantia destinada a futuro aumento de capital não deve ser objeto de partilha em virtude do fim de união estável, pois não está incluída no conceito de fruto, à luz do art. 1.660, inciso V, do Código Civil.
Uma vez que a distribuição de lucros não é obrigatória, somente por deliberação dos sócios é possível converter os lucros da sociedade para que sejam distribuídos aos sócios, de modo que, sem essa decisão societária, é inviável se falar em “lucro do sócio”, sob pena de agredir a autonomia patrimonial da pessoa jurídica.
Então, para que o cônjuge não sócio não fique à mercê das decisões feitas na empresa, o ideal é a propositura da ação de apuração de haveres, nos termos do art. 600 do Código de Processo Civil, objetivando alcançar a expressão econômica relativas às quotas societárias que integram o patrimônio do casal.
É possível identificar que a dispensa do estudo sob o enfoque empresarial, restringindo-se ao apego exclusivo da problemática de gênero e a possiblidade de fraudes na partilha, provoca uma série de confusões no âmbito de ações de divórcio, o que acaba por tornar o processo judicial ainda mais moroso pela elevação do grau de litigiosidade e pela discussão envolvida em pedidos que não guardam coerência jurídica.
Portanto, a partir de tais premissas, torna-se viável identificar o cabimento e a pertinência de pedidos que serão incluídos em petições iniciais de divórcio e partilha, até mesmo para evitar discussões infindáveis e descabidas sobre os aspectos empresariais que se esgotam na autonomia patrimonial.
*Marcella Leite de Andrade é sócia do ALE Advogados, especialista em Direito Civil, Processual Civil, Família e Sucessões e Direito do Agronegócio.