Detalhes do novo crime – importunação sexual

*Placidina Pires

Quem não se lembra do caso do homem que ejaculou numa passageira em um ônibus em São Paulo no ano de 2017? Pois é, por ocasião do referido episódio, houve grande discussão a respeito da tipicidade do aludido comportamento delituoso, se configurava o crime de estupro e caberia a prisão do agressor ou se configuraria delito de menor gravidade, que não permitia a prisão.

Muitos[1] defenderam que houve crime de estupro, porque a vítima se encontrava em situação de vulnerabilidade, sentada e dormindo, sem qualquer possibilidade de reação, enquanto outros sustentaram que, como não houve violência ou grave ameaça, a conduta melhor se amoldava a outras figuras penais, a exemplo da contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, de modo que a resposta estatal não poderia ultrapassar a imposição de uma multa. Infelizmente, prevaleceu o último entendimento e o agressor foi solto.

Descobriu-se, naquela oportunidade, que inúmeras pessoas, na sua grande maioria mulheres, eram vítimas, diariamente, de importunações sexuais daquela natureza no interior de ônibus, metrôs e até mesmo no meio da rua e que pouco se poderia fazer porque a legislação vigente não permitia a aplicação de sanções penais mais rigorosas para estes casos.

Diante desse cenário, o legislador brasileiro, com a louvável finalidade de atender ao reclamo social e dar uma resposta estatal consentânea com a gravidade do citado fato criminoso, editou a Lei 13.718, em 24 de setembro de 2018, azo em que criou um novo tipo penal, prevendo o crime de importunação sexual no artigo 215-A do Código Penal, com pena de 01(um) a 05(cinco) anos de reclusão.

Observe a redação do artigo 215-A do Código Penal: “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.”

Não remanesce dúvida de que o novo tipo penal foi editado com a finalidade de criminalizar e punir mais severamente os executores de importunações sexuais – perpetradas sem o emprego de violência ou grave ameaça – como a reportada acima (masturbação direcionada a uma vítima específica), as quais não configuram o crime de estupro e, por isso, antes, ficavam praticamente impunes.

O novo crime visa contemplar, também, as “passadas” de mão e as apalpações nos seios e demais partes íntimas das vítimas, o beijo, o toque e esfregões lascivos, bem como todo e qualquer ato libidinoso praticado, sem a anuência do(a) ofendido(a), que tenham como objetivo satisfazer o prazer sexual do agressor ou de terceiro.

A partir de então, o autor de importunações sexuais semelhantes poderá ter sua prisão preventiva decretada, desde que as circunstâncias do caso concreto recomendem a imposição dessa medida, vez que o delito prevê pena superior a 04(quatro) anos, o mesmo podendo ocorrer nas hipóteses de reiteração delitiva ou reincidência.

Como a pena máxima excede a 04(quatro) anos e o delito não é mais de menor potencial ofensivo, deverá ser instaurado inquérito policial, sem possibilidade de arbitramento de fiança pela autoridade policial. O preso precisará ser encaminhado para a audiência de custódia e um juiz decidirá a respeito da necessidade ou não da manutenção de sua prisão. No entanto, mesmo que proposta a ação penal, considerando que a pena mínima não excede a 01(um) ano, será possível a aplicação do benefício da suspensão condicional do processo ao réu, mediante proposta do Ministério Público.

Da leitura da nova lei (Lei 13.718, de 24 de setembro de 2018), vê-se que a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor (artigo 61 do Decreto Lei 3688/41[2]) deixou de existir – foi revogada – e surgiu em seu lugar o novo crime de importunação sexual, cuja pena somente poderá ser aplicada nos casos ocorridos após a sua vigência (princípio da irretroatividade da lei penal incriminadora).

O crime pode ser cometido tanto contra homens quanto mulheres. É crime comum, que pode ser praticado por qualquer pessoa. É instantâneo e de mera conduta. Admite tentativa, por ser plurissubsistente.

Não se aplica quando a vítima for menor de 14 (catorze) anos ou se encontrar em situação de vulnerabilidade. Nestes casos, o crime será o de estupro de vulnerável, porque o simples fato de praticar qualquer ato libidinoso com pessoa nas hipóteses relatadas – menor de 14 (catorze) anos ou vulnerável – já configura o crime do artigo 217-A do Código Penal – cuja pena é mais grave.

Somente haverá crime de importunação sexual se o ato libidinoso não for de natureza mais invasiva, tal como acontece com o sexo oral, anal ou conjunção carnal, caso em que o agente responderá pelo crime de estupro, ilação que se extrai da expressão “se o ato não constitui(r) crime mais grave” (princípio da subsidiariedade)

Configura-se o novo crime quando o ato libidinoso for praticado tanto em local público ou de acesso ao público, quanto em ambientes fechados, já que, diversamente, da contravenção de importunação ofensiva ao pudor não constaram no texto legal as expressões “em local público ou acessível ao público”.

Todavia, somente haverá crime se o agente tiver por desiderato (finalidade específica) satisfazer a sua lascívia (o seu prazer sexual) ou a de outrem. Os toques e esbarrões acidentais, como os que, normalmente, ocorrem em ambientes com grande aglomeração ou fluxo de pessoas, não configuram o crime.

Se houver o emprego de violência ou grave ameaça, o crime será o de estupro. Havendo o consentimento da vítima, a conduta será atípica.

Com a nova lei, tanto no crime de importunação sexual como na quase totalidade dos crimes contra a dignidade sexual (dos capítulos I e II), a ação penal passou a ser pública incondicionada, ou seja, não dependerá de nenhuma provocação da vítima ou dos outros legitimados previstos em lei para que a ação penal seja instaurada.

Quis o legislador proteger as vítimas de crimes sexuais de forma bem ampla, mas, para tanto, retirou-lhes, inclusive das maiores de idade e com plena capacidade civil, o poder de decidir se desejam ou não a deflagração da persecução criminal. Basta que a autoridade policial ou Ministério Público tome conhecimento do crime para que tenha início a investigação e o processo.

A meu ver, nesse ponto, a inovação não foi acertada, porque retirou da vítima –  seja homem ou mulher – mesmo quando for maior de idade e absolutamente capaz – o direito de escolher se tem ou não interesse na apuração da infração penal.

As regras anteriores, incluindo a previsão da Súmula 608 do STF, nesse particular, no meu sentir, eram mais adequadas. A vítima de crime sexual não pode ser tratada assim, muito menos com desconfiança. Essa é a razão pela qual muitas deixam de procurar ajuda e se calam.

Outro ponto negativo da nova lei é que as famigeradas “cantadas de rua” – cantadas despudoradas e vexatórias, aquelas que incomodam e constrangem quase que na mesma medida que a importunação sexual, deixaram de ser crime (abolitio criminis) e não podem mais ser punidas. As cantadas não foram contempladas na nova figura típica de importunação sexual e a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor foi revogada. Agora, nem com pena de multa os  agressores poderão ser apenados. Resta às vítimas invocar reparação de danos morais na esfera cível.

Já se as “cantadas” tiverem sido praticadas pelo patrão, chefe ou superior hierárquico, o crime será o de assédio sexual (artigo 216-A do CP), mas, se consistirem em xingamentos ou ofensas à honra subjetiva da vítima, poderá configurar o crime de injúria, de ação privada.

De outra banda, exibir o órgão genital em local público ou exposto ao público configura o crime de ato obsceno, punido com pena de detenção (crime de menor potencial ofensivo).

[1] Entendimento com o qual concordei.

[2] Art. 61 da Lei de Contravenções Penais. “Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor: Pena – multa”.

*Placidina Pires é juíza Criminal em Goiânia/GO – titular 6ª Vara dos Crimes Punidos com Reclusão