Decreto Estadual nº 9.654/2020 e a inconstitucional suspensão da fruição de benefícios fiscais

*Fernando Ribeiro Alves

No dia 23 de abril de 2020, o empresariado goiano deparou-se com a publicação do Decreto nº 9.654/2020, o qual prevê em seu artigo 1º que a fruição dos benefícios fiscais concedidos pelo Estado de Goiás será suspensa nos casos de demissão, sem justa causa, ou suspensão do contrato de trabalho de trabalhadores enquadrados no “grupo de risco” para infecção pelo novo coronavírus (Covid-19).

O parágrafo único do artigo 1º, por sua vez, define que são considerados trabalhadores do grupo de risco aqueles que possuem uma ou mais das seguintes condições: idade igual ou superior a 60 anos, cardiopatias graves ou descompensados (insuficiência cardíaca, cardiopatia isquêmica); pneumopatias graves ou descompensados (asma moderada/grave, doença pulmonar obstrutiva crônica); imunodepressão; doenças renais crônicas em estágio avançado (graus 3, 4 e 5); diabetes melitus, conforme juízo clínico; doenças cromossômicas com estado de fragilidade imunológica e gestação de alto risco.

Por fim, o artigo 2º do Decreto dispõe que fica delegada à Secretária de Estado de Economia a edição de normas complementares, enquanto que o artigo 3º dispõe que as normas recém criadas entram em vigor na data de sua publicação (23/04/2020).

A publicação do Decreto veio carregada de certa preocupação, haja vista que, nos últimos dias, inúmeras empresas foram fortemente impactadas pela queda de faturamento causada pela pandemia e pela suspensão das atividades empresariais, o que levou-as a suspender contratos de trabalho ou realizar demissões – sob pena de colocar em risco o próprio futuro das empresas. Não bastasse isso, estariam os benefícios fiscais, tão essenciais às empresas, também em risco?

Diante dos potenciais impactos desse Decreto às relações empresariais, convém realizar uma breve análise de seu teor, sob a ótica do Direito Tributário.

O artigo 1º do Decreto nº 9.654/2020 não deixa de dúvidas de que tem por finalidade restringir a fruição de benefícios concedidos pelo Estado de Goiás nas hipóteses que estabelece. Mas que benefícios fiscais seriam esses? A resposta a essa pergunta encontra-se no artigo 41 do Código Tributário Estadual (Lei Estadual nº 11.651/91), o qual é responsável por definir os benefícios vigentes no Estado:

Art. 41. São os benefícios fiscais:

I – a isenção;

II – a redução da base de cálculo do imposto;

III – o crédito outorgado;

IV – a manutenção de crédito;

V – a devolução total ou parcial do imposto.

Ao se analisar novamente a redação do artigo 1º do Decreto, não é difícil notar que o dispositivo não se utiliza de qualquer dessas cinco espécies de benefícios fiscais, mas sim do gênero em si: “benefícios fiscais”. Logo, é adequado afirmar que todos os benefícios fiscais concedidos pelo Estado de Goiás serão impactados pelo Decreto – sobretudo quando se observa a utilização do verbo “será” pelo artigo 1º (a fruição  será suspensa), que retira qualquer margem de discricionariedade da Secretária de Estado da Economia, que terá por tarefa apenas editar normas complementares.

A aplicação do Decreto, porém, encontra ao menos três limites na legislação constitucional-tributária que podem inviabilizar a sua aplicabilidade imediata.

O primeiro desses limites diz respeito à regra da anterioridade anual, a qual dispõe que é vedado ao Poder Público cobrar tributo no mesmo exercício em que haja sido publicada a lei que o instituiu ou aumentou (artigo 150, inciso III, alínea “b” da Constituição Federal). O artigo 1º do Decreto nº 9.654/2020, ao reduzir a amplitude dos benefícios fiscais, indiretamente ocasiona aumento de tributo, atraindo assim a aplicação da regra da anterioridade anual. Dito isso, embora o Decreto entre em vigor na data da sua publicação, a sua eficácia ficará suspensa até o exercício seguinte, ou seja, até 01/01/2021.

O segundo limite que se pode abordar diz respeito ao fato de que o Decreto nº 9.654/2020 é ineficaz com relação a benefícios fiscais concedidos pelo Estado de Goiás por prazo certo e em troca de contrapartidas prestadas pelos contribuintes (criação de empregos, realização de investimentos, etc.), sob pena de prejudicar ato jurídico perfeito (artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal). São exemplos desses benefícios fiscais os concedidos dentro dos programas Produzir, Fomentar, entre outros.

O terceiro limite diz respeito à quebra de isonomia entre contribuintes que se encontram em situação equivalente (artigo 150, inciso II da Constituição Federal). Não há dúvidas de que a sociedade como um todo foi duramente atingida pelos efeitos nocivos da pandemia. Com as empresas, não foi diferente. Ao se instituir tratamento desigual entre empresas pelo fato de algumas terem conseguido manter todos os seus empregos, mas outras, não, o Poder Público acaba criando fator de discrímen que concede às empresas tratamento anti-isonômico – punindo justamente aquelas que, em pior condição econômica, viram-se obrigadas a encerrar ou suspender contratos de trabalho, e que por consequência ainda terão que suportar maior carga tributária.

Diante de tais restrições de índole constitucional, não há dúvidas de que muito em breve os empresários atingidos pelo Decreto nº 9.654/2020 baterão às portas do Poder Judiciário, ao qual cumprirá, mais uma vez, fazer cessar outra de tantas ilegalidades que vêm sendo decretadas pelo Governo Estadual.

*Fernando Ribeiro Alves é advogado tributarista, sócio do GMPR Advogados