Das falácias aos enigmas

Marcelo Bareato* 

Vivemos em um contexto onde o discurso anda muito aquém da realidade, o que acaba por gerar influencias devastadoras, na medida em que os destinatários não apresentam discernimento sobre o que recebem a título de informação e nem mantém contato com a cultura jurídica, o que seria o normal para aqueles que querem pertencer a um grupamento social que se imagina prospero e pronto a enfrentar os desafios do futuro. Nessa esteira, o artigo de hoje mira as falas nebulosas de nosso judiciário que, mais não fazem, do que jogar uma cortina de fumaça sobre quem as ouve. Assim, nunca foi tão importante saber qual é a mensagem e o que se está validando, ao invés de fechar os olhos para as entrelinhas.

Destarte, o famigerado Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, apresentado pelo presidente do STF ao CNJ, merece toda a atenção, na medida em que, ao leigo, parece ser necessário e muito bem intencionado, mas, na verdade, fomenta reconhecer os julgamentos fora da lei, pautados em dilemas e jurisprudências mal ajambradas.

Comecemos pela ideia principal, que foi a criação da TV Justiça, implementada pela assinatura da Lei n.º 10.461/2002, na presidência do então Ministro Marco Aurélio, junto ao STF, em cuja promessa estava levar a população transparência nos julgamentos e permitir que o cidadão conhecesse um pouco do judiciário e sua atividade. Percebam! A ideia é levar o judiciário a sua casa, sem lhe ensinar como funciona o sistema jurídico brasileiro e nem mostrar-lhe, de forma fácil e acessível, quais são os seus direitos. Em vista disso, ao longo desses 22 anos de transmissões, a TV Justiça teve o condão de transformar o STF na primeira Corte Constitucional do mundo a transmitir, ao vivo, uma sessão plenária de julgamento e, assim, vem fazendo desde então.

É claro que o leitor poderá relacionar o que estamos tratando com outros tribunais que também transmitem seus julgamentos, como é o caso do Tribunal Penal Internacional (ou Tribunal de Haia, na Holanda), mas, para que não percamos o foco, esses tribunais jamais se utilizam da filmagem em tempo real. Normalmente, disponibilizam as imagens entre 30 minutos e até dias após o ocorrido, para que possam mostrar o que lhes interessa. Neste caso, veja-se, por exemplo, o julgamento do Tribunal de Nuremberg, hoje disponível via diversos sistemas de TV e plataformas, como é o caso Netflix e Youtube.

Data maxima vênia, o que parece bastante favorável no cenário brasileiro, como dissemos acima, na verdade esconde uma grande armadilha, na medida em que possibilita juízes, desembargadores e ministros fazerem uso das mídias, divulgando seus julgamentos em tempo real, como ocorreu no Caso Nardoni, no Caso Suzane Richthofen, Mensalão, Lava Jato e em tantos outros. Paulatinamente estamos abandonando o comprometimento de julgar o fato com a aplicação da norma existente para, simplesmente, declarar como medida final, aquilo que as mídias pulverizam para seus expectadores, bem como o frisson que a reportagem causa sobre aqueles que nada entendem do direito.

Dito de outra forma, não é incomum ver em algumas reportagens, por exemplo, a confusão que se estabelece entre o conceito de justiça e o de vingança, mobilizando a sociedade em um verdadeiro frenesi que, por muitas vezes, leva a linchamentos, maus tratos, feminicídios etc.

Certo é, meu Caro Leitor, que, desde que os juízes começaram a ter visibilidade midiática, a preferência passou a ser cair nas graças do cidadão, ao invés de tomar qualquer medida impopular, ainda que essa medida obedeça ao que determina a legislação. A maneira como estão acontecendo os julgamentos, em nada corresponde com o dever legal de quem tem nas mãos o poder de decisão sobre a vida de quem bate às portas do judiciário.

Para ser mais específico, passemos ao conceito de jurisdição e suas implicações. Quando o formado em direito resolve prestar concurso público para se tornar juiz, caso seja bem-sucedido e passe em tal certame, receberá, para poder atuar, o que chamamos de jurisdição, ou melhor, o poder-dever de dizer o direito. Esse poder/dever, que é limitado pelo conceito de competência, obriga o, agora juiz, a interpretar o caso que lhe chega às mãos nos exatos termos do que diz o texto legal e a Constituição, por isso é dever de dizer o direito, o direito posto. Qualquer outra forma de julgar, que não esteja pautada na lei, é inadmissível e, por via de consequência, nula, ou anulável através do recurso cabível para cada caso.

Esse sistema, proíbe que juízes usem da moral e bons costumes (dilemas), para realizar qualquer julgamento, mesmo porque, é necessário que tenhamos em mente que juiz não faz justiça, apenas aplica a lei. Quem tem a incumbência de fazer justiça é o legislativo, através da produção de leis; a polícia, investigando cada caso com seriedade e nos limites daquilo que prescreve a lei; o Ministério Público, promovendo ações penais com base, estritamente, naquilo que os dispositivos legais preveem.

Não é por menos que o Ministério Público é conhecido por ser o Fiscal da Lei, devendo, para a promoção de uma ação penal viável, obedecer ao que estabelece o artigo 41 do Código de Processo Penal, quando dispõe sobre os requisitos necessários para deflagrar a persecutio criminis. Esse é o sistema jurídico ao qual estamos obrigados.

Contudo, no momento em que tiramos os juízes do anonimato e os colocamos na frente da câmera de um repórter, ou de um câmera man, permitindo que seu trabalho seja visto em tempo real por toda a população, transformamos a obrigação de julgar de acordo com o texto legal, em espetáculo, onde o papel do julgador dá lugar ao ator que quer ser popular e agradar aqueles que lhe assistem. Em outras palavras, permitimos que os juízes interpretem o papel que o cidadão comum espera de cada um deles, seja nas pequenas comarcas, nas cidades de médio porte, ou nas grandes capitais.

Destarte, aí está o perigo e a insegurança jurídica. Vejamos, por exemplo, o discurso do atual Presidente do STF que, quando chamado a palestrar em eventos, diz ser um iluminista, que não segue a Constituição, porque prefere a voz das ruas. Ora! Se ser juiz é estar obrigado à lei e proibido de se valer de qualquer outra forma de julgamento, como é possível que o Ministro da mais Alta Corte Recursal do país, diga que prefere a voz das ruas? E, o que é ainda pior, a “voz das ruas” a que se refere, são os cidadãos, os quais desconhecem totalmente o conteúdo legal e, vez em sempre, se deixam levar pela manipulação midiática que tem interesses político-partidários expressos e bem definidos.

Resta evidente que o juiz que se deixa levar por essa onda, o que busca, na verdade, é a popularidade e, posteriormente, ocupar um cargo político, não se preocupando, em nenhum instante, em estabilizar o convívio social com a aplicação clara da lei aos seus destinatários, ou fazer com que o cidadão possa saber exatamente como deve agir para não ser responsabilizado criminalmente por seus desvios.

Evidente, pois, que quando o judiciário propõe um Pacto Nacional pela Linguagem Simples, acessível a todo e qualquer cidadão, outra medida não é que estabelecer uma falsa crença, uma ideia equivocada da realidade (falácias), quando o correto seria ensinar o conteúdo legal e mostrar quais são os direitos e deveres de cada um. Age, portanto, de forma enigmática, causando ambiguidade no discurso, pois impede que os destinatários da norma conheçam a fundo o seu conteúdo, induzindo a ideia de que, através de comparações subjetivas, será possível chegar a um direito que traga estabilidade, quando na verdade, o que se está a fazer é desestabilizar totalmente o direito existente e mergulhar em mares de profunda insegurança jurídica, dos quais dificilmente veremos o reverso em pequeno e médio prazo.

*Marcelo Bareato é advogado Criminalista com ênfase no Direito Penal Econômico, doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, membro da Coordenação de Política Penitenciária  da OAB/Nacional gestão (2022/2025), Coordenador da subcomissão de Direitos Humanos para o Sistema Prisional  da OAB/Goiás (gestão 2022/2024) e Coordenador da Comissão Interestadual de Acompanhamento da Saúde no Sistema Prisional junto ao Conselho Municipal de Saúde de Aparecida de Goiânia/GO, Membro do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura/GO, Membro do FOCCO – Fórum Permanente de Combate à Corrupção do Estado de Goiás, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).