Compete à União a encampação ou caducidade do serviço de energia elétrica de Goiás

*Ponciano Martins Souto

Recentemente, foi apresentado pelo líder do Governo e pelo presidente da Assembleia Legislativa, deputado Lissauer Vieira (PL) no sentido de autorizar o governador do Estado, Ronaldo Caiado (DEM), a extinguir unilateralmente o contrato de concessão para prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica n° 063/2000, firmado com a Celg Distribuição S/A — CELG D, atual Enel Goiás.

Nesse sentido, prevê o art. 2º do citado projeto de lei:

“Art. 2° Fica encampado o serviço público de distribuição de energia elétrica para o Estado de Goiás, por intermédio da empresa estatal Celg Geração e Transmissão S/A — Celg GT, até que haja uma nova licitação.”

Dentre as justificativas do projeto apresentado, anotam que:

“(…) o consumidor goiano ficou 26,61 horas sem energia (contra 12,85 horas da média nacional), e a freqüência de interrupções de energia foi de 15,03 (mais do que o dobro da média nacional, de 7,17). Esses dados colocaram em empresa em último lugar, no ranking nacional, pela quinta vez consecutiva (…).”

O assunto tem gerado uma série de discussão, v.g., no âmbito da CCJ da Alego, especialmente quanto à legalidade e constitucionalidade do ato. Não obstante, o Governador vem reforçado a legitimidade do ato de encampação por parte do Estado sob o argumento de que “a Constituição Brasileira dá ao Governador do Estado Direito Concorrente”.

Em verdade, a discussão sobre a qualidade do serviço de Distribuição de Energia do Estado já vem sendo travada, politicamente falando, há meses. Não obstante, há algumas semanas, a ENEL foi multada pela Agência Goiana de Regulação, Controle e Fiscalização de Serviços Públicos (AGR) em R$ 62 milhões, por prestação inadequada de serviços.

Salta aos olhos que o impasse sobre o serviço prestado tem gerado não só desconforto econômico e social, mas também insegurança jurídica, seja a ENEL Goiás, sejam ao Estado. Entretanto, cumpre-nos, a reflexão técnica da matéria: O Estado de Goiás tem legitimidade para encampar o serviço de energia elétrica? Acredito que não.

Pois bem. Dentre todas as espécies de interrupção contratual da relação instaurada, a encampação é de longe a modalidade mais drástica.

O instituto da encampação consiste no ato de retomada do serviço pelo Poder Concedente durante o prazo da concessão, por motivo de interesse público mediante lei autorizativa específica e após prévio pagamento da indenização dos investimentos não amortizados ou depreciados (art. 37 da Lei n.º 8987 /95).

Nesses termos, a encampação exige a presença de três requisitos essenciais: 1) interesse público; 2) pagamento de indenização; 3) lei específica.

Quanto ao primeiro, se observa a discricionariedade do gestor atender ao interesse público, isso é, dependendo a decisão do foro íntimo da autoridade pública, sendo vedada a instrumentalização do instituto de modo arbitrário ou como fonte de enriquecimento ilícito do estado.

Quanto ao segundo, nos moldes do Supremo Tribunal Federal (ADI 1746), o pagamento precisa ser prévio a fim de não desrespeitar o equilíbrio econômico-financeiro do pacto e as vantagens inicialmente asseguradas à empresa concessionária.

Por último, há necessidade da edição de uma lei, prévia e específica, com o escopo de autorizar à encampação, naturalmente, a instrumentalização deste ato normativo se relaciona com a competência do próprio Poder Concedente. Dito de outro modo, deve existir um nexo entre a competência da natureza do serviço público delegado e o ato administrativo material exarado, ou seja, a legitimidade para editar o decreto extinguindo o contrato firmado deverá coincidir com a natureza do serviço delegado.

Com efeito, a Constituição do Brasil define a competência exclusiva da União para explorar os serviços e instalações de energia elétrica (art. 21, XII, b) e privativa para legislar sobre a matéria (art. 22, IV), por esta razão, entendo que a União é a detentora da titularidade da prestação do serviço público delegado a Celg D (Enel Goiás), portanto, somente um ato oriundo do executivo federal pode pôr fim à avença firmada no Estado.

Desse modo, a União, através da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), é responsável pelo Poder Concedente da prestação de serviço público de distribuição de energia elétrica, incumbindo a ela a extinção da respectiva concessão do serviço público delegado a empresa Celg D (seja por encampação ou por caducidade).

A propósito, o Supremo Tribunal Federal, em sua penúltima sessão plenária, em sede de Controle Concentrado de Constitucionalidade, reafirmou jurisprudência no sentido de que os demais entes federativos não podem interferir na prestação de serviço público federal, vejamos:

Os prazos e valores referentes à religação do fornecimento de energia elétrica não apenas já estão normatizados na legislação setorial pertinente, como o quantum pelo serviços cobráveis e visitas técnicas submetem-se à homologação da ANEEL, razão pela qual não remanesce, sob esse prisma, qualquer espaço para a atuação legislativa estadual, mercê de, a pretexto de ofertar maior proteção ao consumidor, o ente federativo tornar sem efeito norma técnica exarada pela agência reguladora competente. In casu, a lei estadual impugnada, ao dispor sobre a proibição de cobrança de taxa de religação de energia elétrica em caso de corte de fornecimento por falta de pagamento e estabelecer prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas para restabelecimento do serviço, sem qualquer ônus para o consumidor, invadiu a competência privativa da União para legislar sobre energia (artigo 22, IV, da Constituição Federal), bem como interferiu na prestação de serviço público federal (artigo 21, XII, b, da Constituição Federal), em diametral contrariedade às normas técnicas setoriais editadas pela ANEEL, com reflexos na respectiva política tarifária. (ADI 5.610, rel. min. Luiz Fux, j. 8-8-2019, P, DJE de 20-11-2019.)

Ainda, há de se anotar que a exploração de energia elétrica, nos moldes do art. 21, XII, b é de competência exclusiva da União, não podendo o Estado de Goiás, sob nenhuma hipótese, legislar sobre o tema. Aliás, reitera-se, somente a União poderia autorizar eventual extinção de concessão pública do serviço, seja por encampação ou por caducidade. A propósito:

“Ação direta de inconstitucionalidade contra a expressão “energia elétrica”, contida no caput do art. 1º da Lei 11.260/2002 do Estado de São Paulo, que proíbe o corte de energia elétrica, água e gás canalizado por falta de pagamento, sem prévia comunicação ao usuário. Este STF possui firme entendimento no sentido da impossibilidade de interferência do Estado-membro nas relações jurídico-contratuais entre Poder concedente federal e as empresas concessionárias, especificamente no que tange a alterações das condições estipuladas em contrato de concessão de serviços públicos, sob regime federal, mediante a edição de leis estaduais. Precedentes. Violação aos arts. 21, XII, b; 22, IV; e 175, caput e parágrafo único, I, II e III; da CF. Inconstitucionalidade. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 3.729, rel. min. Gilmar Mendes, j. 17-9-2007, P, DJ de 9-11-2007.)”

Por fim, entendo por Inconstitucional a PL apresentada, visto que Estados-membros – não podem interferir na esfera das relações jurídico-contratuais estabelecidas entre o poder concedente de serviço público de energia elétrica (ANEEL) e as empresas concessionárias. Da mesma forma, o Estado de Goiás também não dispõem de competência constitucional para modificar ou alterar as condições, que, previstas na licitação, acham-se formalmente estipuladas no contrato de concessão celebrado pela União (energia elétrica – CF, art. 21, XII, b).

Há de se buscar outro meio para solução desse desgastado impasse!

*Ponciano Martins Souto é advogado. Especialista em Direito Constitucional (IDP). Presidente da Comissão de Direito Constitucional e Legislação da OAB-GO. Diretor Adjunto da Casag.