Causa indigna e o direito de defesa

*Marcelo Bareato

O tempo passa e parece que nós, brasileiros, continuamos a ignorar o aspecto de que ser cidadão é, antes de mais nada, ter uma Constituição forte, uma moeda forte e credibilidade no cenário internacional.

Para tanto, pouca ou nenhuma serventia existe em ter uma das melhores constituições do mundo (como é o caso da brasileira) e não se interessar por conhecer quais são os seus direitos e deveres, ou entender o peso e segurança jurídica que existe em um procedimento que garanta o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e a imparcialidade do julgador.

Desta feita, é imprescindível esclarecer que não existe legitimidade processual sem garantir ao acusado que conheça a acusação, quem lhe acusa, que possa escolher seu defensor e que o juiz seja convencido durante o processo, sem qualquer nterferência da mídia ou se sentimentos que lhe causem afeição por qualquer das partes (acusação ou defesa), antes da sentença.

Dito isso, meu Caro Leitor, é com essa primeira ideia que começamos nosso artigo de hoje.

Assim, o Direito de Defesa, direito irrenunciável no sistema jurídico pátrio e previsto na Carta Magna em seu artigo 5.º, inciso LV, obriga “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

No mesmo sentido, à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, aprovada pelo Congresso Nacional, em 1992, através do Decreto n.º 27, prescreve:

Artigo 8º – Garantias judiciais
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal;
b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa;
d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;
f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada;
e h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.
3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.
5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.

Ora! Ao ler os dispositivos acima, parece de uma clareza meridiana que o nosso sistema jurídico obriga a garantia do Direito de Defesa, o qual não pode ser descumprido sob pena de sermos compelidos pelo tratado internacional (Pacto de San José da Costa Rica), do qual somos signatários, a reparação do erro e retorno ao momento processual onde fora descumprido o preceito legal, sob pena de nulidade e sanções internacionais (sobre o assunto, consultar o que determina a Corte Interamericana de Direitos Humanos).

Destarte, se a obrigatoriedade é a aplicação e reconhecimento do Direito de Defesa, a contrário senso, parece incompreensível quando “pessoas esclarecidas”, como por exemplo deveria ser a apresentadora Xuxa Meneghel, a qual no último dia 15 de julho, via instagram pessoal e com referência ao caso do DJ Ivis (preso por agressões à esposa no Ceará), ao se referir a ele (direito de defesa), expressou que tal garantia constitucional é mera “regalia”; vejamos:

A apresentadora Xuxa Meneghel, de 58 anos, questionou o direito a defesa criminal e “regalias” de Ivis Araújo, preso por agredir a esposa Pamella Holanda. Em publicação no Instagram nesta quinta-feira, 15, ela perguntou se os advogados do DJ têm filhas ou irmãs e se “existe justificativa para tanta covardia”, ainda se referindo à existência de defesa.

Em sua declaração, Xuxa afirmou que “tem muita gente que não fez nada ou muito pouco e está apodrecendo na cadeia”, enquanto Ivis tem acesso a “regalias”, como a defesa criminal e cuidados. “Se ele tiver regalias nunca vão parar com agressões com mulheres”, escreveu (mais informações veja site direitonews, entre outros).

Nesse passo e vindo de uma pessoa pública a qual disfruta de uma imensidão de seguidores, a infeliz colocação faz renascer a polêmica sobre existir em nosso ordenamento jurídico a possibilidade de que alguns crimes sejam indefensáveis, gerando o que há muito se conhece por Causa Indigna, ou seja, para certos fatos, a prisão e a condenação seriam automáticas como forma de contenção da violência e restruturação do convívio em sociedade.

Mas o que seria uma causa indigna no contexto simples e direto? Indigna seria a causa que enfurece, deixa enraivecido, revolta o senso comum.

A melhor forma de trabalharmos a questão posta, já que falamos basicamente do conhecimento que deveria ser obrigatório por todo cidadão da nossa legislação e assuntos correlatos, é trazer Rui Barbosa que, em 1911, quando respondeu a uma consulta formulada por Evaristo de Moraes, então rábula em direito, sobre o caso de Mendes Tavares, na carta que ficou conhecida como O dever do advogado, após asseverar sobre o múnus do advogado criminalista estar acima das disputas políticas, assim se posicionou:

Recuar ante a objeção de que o acusado é ‘indigno de defesa’ era o que não poderia fazer o meu douto colega, sem ignorar as leis do seu ofício, ou traí-las. Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá -la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas.

Vê-se, claramente, que a incauta manifestação da apresentadora fez ressurgir não só a antiga, mas sempre presente, dúvida sobre o que deve ser defendido ou não, mas também renasceu a rusga com que os advogados criminalistas são tratados ao sair na defesa da Constituição Federal e do devido processo legal, não como forma de salvaguarda de criminosos, mas como defensores ferrenhos dos direitos e garantias fundamentais que devem estar à disposição de todos os cidadãos, seja para o processo, seja no dia a dia, seja no tratamento com dignidade que todo indivíduo deve receber, sob pena de estabelecermos o caos entre as formas de intervenção na esfera privada dos indivíduos e o distanciamento entre pessoas mais ou menos abastadas.

É importante deixarmos claro que os discursos de ódio que hoje vemos pelas redes sociais e mídias em geral não são privilegio dos tempos modernos, mas sim antigos e com fundo desestabilizador dentro das sociedades em que são lançados. São tão perigosos que encontram eco nos mais longínquos tempos, remontando, por exemplo, a meados de 1700, em Paris, quando Nicolas Berryer costumava iniciar suas defesas no tribunal do terror revolucionário, com os seguintes dizeres: “Trago à convenção a verdade e a minha cabeça; poderão dispor da segunda, mas só depois de ouvir a primeira”.

É sob essa ótica que cabe reafirmar, como deixamos claro em nossos artigos anteriores, que é passada a hora de entender o quão necessário é conhecer o direito, a que ele se destina, quais os métodos de interpretação da norma, recobrar o gosto pelo estudo e leitura. Nunca foi tão necessário isolar aqueles que se autoproclamam “homens modernos”, ou seja, pessoas que não leem nada, não pesquisam, fazem grupos de whatsapp e proliferam sua ausência de raciocínio e reflexão, valorizando simplesmente replicar o que acham bonito e escrever discursos de ódio em 10 ou 15 linhas, apenas para ver o conteúdo publicado alcançar algumas curtidas e talvez umas 20 citações. Nesse passo, outra saída não há, se quisermos alcançar um Estado justo, de auto controle e
respeitado internacionalmente.

É nesse sentido que andam mal aqueles que insistem em desacreditar o trabalho dos advogados criminalistas, os quais exercem sua profissão com maestria e nos exatos termos da legislação pátria, assim como os que desconhecem os direitos e garantias fundamentais que lhes dão suporte a dignidade e impedem que o senso comum (homens modernos) crie, voluntariamente, Causas gravadas com o selo da Indignidade e perturbem o Direito a Defesa de todo e qualquer cidadão entendido “de bem”, até que um processo legítimo e findo lhe retire essa qualidade. Essa é, sem sombra de dúvidas, a causa mais premente da atualidade e, como já nos ensinava Giuseppe Zanardelli (Itália 1826 a 1903) “Até o patrocínio de uma causa má é legitimo e obrigatório, porque a humanidade o
ordena, a piedade o exige, o costume e a lei o impõe”.

*Marcelo Bareato é doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Advogado Criminalista, membro da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB Nacional, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Presidente da Comissão Especial de Direito Penitenciário e Sistema Prisional da OAB/GO, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).