Baralho processual penal: os curingas nas buscas e apreensões

*Kelvin Wallace

A carta do baralho que não tem numeração específica e que permite os mais variados significados a depender do jogo, sem dúvidas, é o curinga, sendo que sua função mais conhecida é a de poder substituir qualquer outra carta. De outro lado, é crescente o uso de curingas na temática: busca e apreensão, que são embaralhados com conteúdo genéricos e executados sem qualquer observância aos direitos e garantias constitucionais.

Em breve passagem introdutória, a busca e apreensão são dois institutos distintos, que corriqueiramente são tratados como um só. Compreendemos a busca como diligência cujo objetivo é o de encontrar pessoas ou objetos, ao passo que a apreensão consiste na retenção do objeto ou pessoa [1].

Assim, é importante notar a usual natureza jurídica como meio de obtenção de prova, podendo tanto a busca (pessoal ou domiciliar), quanto a apreensão, ocorrer no curso do inquérito policial ou durante o processo e excepcionalmente na fase de execução penal nos termos do art. 145 da LEP [2].

O primeiro tormento da carta curinga é quanto à busca pessoal que pode ser determinada quando houver fundada suspeita (art. 240, §2º, do CPP), podendo a autoridade policial (militar ou civil, federal ou estadual) revistar o agente, sendo dispensável prévia autorização judicial.

O problema é o que seria esse suposto curinga “fundada suspeita”, vez que não há construção firme na jurisprudência ou na doutrina do seu real significado, o que possibilita o seu uso de forma discricionária, assim, discordamos desta carta no baralho processual penal por ter conotação genérica e subjetiva. Por sua vez, para evitar essa ‘jogada’ que afetam direitos fundamentais, se faz necessário o aprofundamento do tema, na pretensão de regulamentação legal detalhando o seu procedimento com base em elementos concretos que indiquem a necessidade da medida [3].

Noutro giro, quanto à busca domiciliar, deve ser em regra determinada pela autoridade judiciária, salvo as exceções (art. 5º, IX, CF/88), sob pena de incorrer a autoridade policial no crime de abuso de autoridade (art. 22, da Lei 13.869/19), invalidando desta forma, a ordem da referida diligência além de celebrar a ilicitude da prova com a consequente inutilização e o desentranhamento dos autos [4].

Nessa linha, podemos constatar outro suposto curinga no baralho, este agora referente à busca domiciliar sobre a expressão “fundadas razões” (art. 240, § 1º, do CPP), apontando novamente as cartas ao limbo processual, alimentando um campo fértil para a subjetividade do magistrado, o que outrora, só seria autorizada com a comprovação da existência de um crime e da autoria com lastro suficiente indicando que os objetos ou pessoas estão realmente na casa ou no local determinado.

Comungando com a mesma dor, não podemos esquecer o suposto curinga full deste baralho processual penal, que são os mandados de busca e apreensão genéricos, pois tal medida vem desvirtuando a sua finalidade específica, permitindo uma manobra judicial desenfreada em números indeterminados de residências, ruas, quarteirões, favelas, apartamentos e condomínios.

Hipótese obviamente ilegal, absurda, defeituosa e que simboliza nitidamente abuso de autoridade. Nessa mesma manilha, estes curingas consagram modalidade de “fishing expedition”, sendo utilizados para subverter a lógica das garantias constitucionais, rasgando completamente o baralho, enfim, violando os direitos fundamentais, para além dos limites legais [5].

Neste desfecho, o que se espera de um autêntico baralho processual penal é um estabelecimento de limites quanto às medidas invocadas e executadas, além do respeito quanto aos motivos e os fins da diligência referendada.

Por fim, por atacar direitos e garantias fundamentais, esta excepcional medida deve ser autorizada pelo magistrado somente e quando os requisitos legais estiverem devidamente demonstrados, caso contrário, será concretizado manifesta violação aos direitos e garantias constitucionais.

*Kelvin Wallace é advogado criminalista e professor universitário. Especialista em Direito Penal e Processo Penal e Docência Universitária. Secretário adjunto da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim-GO.

REFERÊNCIAS
[1] DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Mastersaf, 2018, p. 699.
[2] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 555-556-574.
[3] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 14. ed. rev. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019, p. 791.
[4] LIMA; Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 7. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019, p. 747-748.
[5] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 6. ed. rev., atual. e ampl. Florianópolis: EMais, 2020, p. 430-431-675.