Aplicação dos Direitos Fundamentais nos conflitos entre particulares

advogado Carlos Eduardo Vinaud PignataPor volta de 1715, o Rei Luís XIV, conhecido como o “Rei Sol”, teria proferido sua célebre frase: “O Estado sou Eu”. Em que pese alguns historiadores concluírem que tal frase não passa de uma lenda, ela serve para ilustrar o comportamento do Estado diante de seus súditos.

Como se sabe, ao longo de vários séculos, o Estado se posicionou de forma hierarquicamente superior ao indivíduo, numa relação verticalizada e de subordinação. Ocorre que, com as revoluções burguesas, os soberanos, aos poucos, perderam seu poder ilimitado e passaram a se posicionar de forma subordinada à lei.

Instituía-se, então, o Estado de Direito, momento em que o poder passou a ser limitado pela Ordem Jurídica vigente. As leis passaram então a determinar a estrutura do Estado, suas funções, bem como às garantias e direitos dos cidadãos. Assim, tanto o Estado quanto seus indivíduos deveriam ser submetidos às normas.

E, dentre as limitações de poder do Estado, surgiram os Direitos Fundamentais, instrumentos criados para frear a vontade do governante frente aos indivíduos. Segundo Canotilho, os Direitos Fundamentais podem ser definidos da seguinte forma:

“(…) os direitos fundamentais em sentido próprio são, essencialmente direitos ao homem individual, livre e, por certo, direito que ele tem frente ao Estado, decorrendo o caráter absoluto da pretensão, cujo o exercício não depende de previsão em legislação infraconstitucional, cercando-se o direito de diversas garantias com força constitucional, objetivando-se sua imutabilidade jurídica e política. (…) direitos do particular perante o Estado, essencialmente direito de autonomia e direitos de defesa.”[1]

Na Constituição Brasileira, os Direitos Fundamentais possuem posição de destaque, sendo o centro de estudo dos principais estudiosos do direito constitucional. Dentre os vários direitos fundamentais espalhados pela Carta Magna, temos, por exemplo, o artigo 5º, provido de setenta e oito incisos, que traz em seu conteúdo questões relativas à vida, liberdade, igualdade, segurança, propriedade, entre outros. Já, por exemplo, do artigo 6º ao 11, há uma gama de direitos sociais, como o direito à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, assistência, etc.

Todavia, com a evolução histórica, a ameaça aos direitos dos indivíduos deixou de ser unicamente verticalizada, ou seja, na relação do indivíduo com o Estado, passando também a ser horizontalizada, entre os atores privados, presentes nas mais variadas áreas, como as empresas, sociedades, associações, mercado, entre outros. Essa horizontalização ocorreu a partir do momento da verificação da existência de opressão também entre os particulares.

Um dos exemplos jurisprudenciais mais significativos, que serve para ilustrar perfeitamente a aplicação prática da horizontalização dos direitos fundamentais foi o Recurso Extraordinário RE: 201819 RJ, vejamos:

“SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois aautonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCR ATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores – UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO” (STF – RE: 201819 RJ , Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 11/10/2005, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577)

No Estado de Goiás, temos ainda inúmeros julgados proferidos pelo TJGO que vem reconhecendo a necessidade de se aplicar os Direitos Fundamentais entre as relações particulares, vejamos:

DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO E APELAÇÃO CÍVEL EM MANDADO DE SEGURANÇA. MATRÍCULA EM INSTITUIÇÃO DE ENSINO FUNDAMENTAL. MENOR COM TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE (TDAH). 1 – A Constituição Federal em seus arts. 205, 206 e 208 assim como o Estatuto da Criança e Adolescente (Lei n. 8.069/90) em seu art. 53 garantem a criança e ao adolescente o direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa assegurando lhe igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. 2 – A garantia de educação não se restringe ao âmbito da rede pública ante a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. 3 – O fato do menor ser portador de TDAH não pode servir de motivo para que a instituição escolar, onde se encontra ambientado, rejeite sua permanência. REMESSA NECESSÁRIA E RECURSO DE APELAÇÃO CONHECIDOS E DESPROVIDOS. (TJGO, DUPLO GRAU DE JURISDICAO 449669-52.2012.8.09.0052, Rel. DES. AMARAL WILSON DE OLIVEIRA, 2A CAMARA CIVEL, julgado em 23/09/2014, DJe 1640 de 01/10/2014).

APELACAO CIVEL. ELEICOES PARA ESCOLHA DE DIRIGENTE DA ASSOCIACAO. USURPACAO DE COMPETENCIA. MATERIA PENDENTE DE JULGAMENTO NA INSTANCIA RECURSAL. NULIDADE DA SENTENCA NAO CONFIGURADA. INTERESSE DE AGIR. PUBLICACAO NO DOU INSUFICIENTE. EFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELACOES PRIVADAS. NOMEACAO DE INTERVENTOR E IMPOSICAO DE MULTA. POSSIBILIDADE. REDUCAO DA MULTA DE OFICIO. I – A SENTENCA QUE CONFIRMA LIMINAR CUJOS EFEITOS ESTAVAM SUSPENSOS POR DETERMINACAO DESTE TRIBUNAL E VALIDA, POREM SO PRODUZIRA EFEITOS APOS O JULGAMENTO FINAL DO AGRAVO DE INSTRUMENTO. II – A PRETENSAO ALMEJADA PELO AUTOR/APELADO DE DETERMINAR A CONVOCACAO PARA ASSEMBLEIAS EXTRAORDINARIAS, VISANDO A ESCOLHA DE DIRIGENTE DA ASSOCIACAO PERMANECE HIGIDA, POIS APESAR DE EFETUADA A PUBLICACAO PELO DIARIO OFICIAL DA UNIAO ESTA NAO CUMPRIU O SEU MISTER DE DAR PUBLICIDADE AO ATO, OPORTUNIZANDO A AMPLA PARTICIPACAO DOS ASSOCIADOS. III – COROLARIO DA EFICACIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, O REFERIDO ESTATUTO NAO SE ENCONTRA AO LARGO DO ORDENAMENTO JURIDICO CONSTITUCIONAL VIGENTE, APLICANDO-SE-LHE TODOS OS DIREITOS FUNDAMENTAIS, MORMENTE O DEVIDO PROCESSO LEGAL, SEGUNDO O QUAL A ENVOCACAO DE ASSEMBLEIA PARA ESCOLHA DO NOVO DIRIGENTE DEVE SER EFETUADA DE FORMA EFICAZ, PUBLICA E TRANSPARENTE, SOB PENA DE SE FERIR O DIREITO DE PARTICIPACAO E O CONTRADITORIO DOS ASSOCIADOS. IV – A NOMEACAO DE INTERVENTOR PARA ATUAR COMO ADMINISTRADOR PROVISORIO, DE FORMA SUBSIDIARIA A MULTA, EM ATENCAO AO PRINCIPIO DA PROPORCIONALIDADE, NAO OFENDE O DISPOSTO NO ARTIGO 5 INCISO XVIII, DA CONSTITUICAO FEDERAL, PORQUANTO VISA ASSEGURAR A EFETIVIDADE DA DECISAO JUDICIAL E RESGUARDAR OS DIREITOS DOS ASSOCIADOS. V – A MULTA E MEIO COERCITIVO PARA GARANTIR O ADIMPLEMENTO DA OBRIGACAO DE FAZER, ESTANDO NO AMBITO DO PODER GERAL DE EFETIVACAO DO MAGISTRADO, NOS TERMOS DO ARTIGO 461, §§ 4 E 5 DO CODIGO DE PROCESSO CIVIL. TODAVIA, NAO DEVE INCIDIR ENQUANTO SUSPENSA A DECISAO LIMINAR QUE A PREVIU, JA QUE DURANTE ESTE PERIODO A OBRIGACAO ERA INEXIGIVEL. VI – SENTENCA REFORMADA APENAS PARA ALTERAR O TERMO A QUO DA INCIDENCIA DA MULTA, BEM ASSIM PARA, DE OFICIO, REDUZIR O VALOR DA COIMA, EIS QUE SE TORNOU EXCESSIVA. INTELIGENCIA DO ARTIGO 461, § 6 DO CODIGO DE PROCESSO CIVIL. APELACAO CIVEL CONHECIDA E PARCIALMENTE PROVIDA. (TJGO, APELACAO CIVEL 134918-3/188, Rel. DES. ALMEIDA BRANCO, 4A CAMARA CIVEL, julgado em 02/04/2009, DJe 321 de 27/04/2009).

Como se constata, nossa jurisprudência tem reconhecido a necessária aplicação imediata dos Direitos Fundamentais nas relações privadas, havendo o reconhecimento também da doutrina e de toda comunidade jurídica, pois vivemos um momento de constitucionalização do Direito, um momento voltado à aplicação dos valores que permeiam nossa constituição.

Assim, a teoria da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais deve ser aplicada de forma intensa, ainda mais quando se verificar uma situação de desigualdades entre os indivíduos e o ente privado violador.

[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5º ed. Editora Livraria Almedina, 2002.

*Carlos Eduardo Vinaud Pignata é advogado da banca Tibúrcio Advogados