Alongamento do crédito rural – Direito do produtor?

*Leonardo Scopel Macchione de Paula

Estamos passando por tempos difíceis, é verdade! Mas também é verdade que o agronegócio segue em crescimento pujante, pois, mesmo em tempos pandêmicos, seu PIB, cada vez mais, só aumenta.

Acontece que não só de “flores” vive o agro. Não basta, simplesmente, semear e colher os frutos. Exige mais. Muito mais!

Tecnologia, estudos, planejamentos, investimentos altíssimos, dentre outros, que se somam, ainda, com as famosas intempéries climáticas.

Aaah, as intempéries.

Fatores externos que fogem do controle humano. Basta uma geada severa que… pronto! O prejuízo é por demais grande e, a depender do caso, irreparável.

Exemplo atual é o que está acontecendo na Cidade de Jataí, interior de Goiás, onde foi declarado situação anormal em decorrência do período de estiagem que o Município vem enfrentando[i], eis que inúmeros produtores vêm relatando prejuízo de até 70% (setenta por cento) – até mais, da produtividade da safra de milho.

Sim, é verdade que existem seguros cujo objetivo é ressarcir prejuízos de tal natureza. Mas sabemos também que referidos seguros são bem “salgados”, motivo pelo qual muitos produtores não o aderem.

Enfim, fato é que a atividade agrícola, longe de qualquer amadorismo é, literalmente, uma “empresa a céu aberto”.

Dito isso, dúvida comum entre os produtores, principalmente agora onde a quebra de safra, para muitos, será uma realidade, é: a instituição financeira é OBRIGADA a renegociar meu contrato de crédito rural, prorrogando-o?

É o que iremos expor neste artigo, de forma geral e resumida, reiterando, sempre, que cada caso deve ser analisado levando em consideração suas peculiaridades.

  1. ALTERAÇÕES RECENTES NO MANUAL DO CRÉDITO RURAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS NAS RENEGOCIAÇÃO DE DÍVIDAS 

Recentemente o Manual de Crédito Rural, que é, hoje, o principal instrumento legislativo do qual estabelece normas gerais relativas ao crédito rural, passou por algumas singelas, porém, profundas mudanças.

Dentre tantas outras, uma tem interferência direta e imediata no objeto do presente artigo: o alongamento do crédito rural.

Antes das alterações, referido manual assim estabelecia:

MCR 2.6.9 – Independentemente de consulta ao Banco Central do Brasil, é devida a prorrogação da dívida, aos mesmos encargos financeiros antes pactuados no instrumento de crédito, desde que se comprove incapacidade de pagamento do mutuário, em consequência de:

Percebe-se, através de uma leitura simples, que a prorrogação do crédito rural era DEVIDA, leia-se: OBRIGATÓRIA, desde que se comprovasse a incapacidade do pagamento em consequência de: (i) dificuldade de comercialização dos produtos, (ii) frustração de safras, por fatores adversos e (iii) eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações.

Portanto, dúvidas não restavam: comprovado alguma das situações acima elencadas (dentre elas, quebra de safra), por meio do procedimento adequado, a instituição financeira era obrigada a proceder com a repactuação do contrato de crédito rural, de acordo com a possibilidade de pagamento do produtor.

Acontece que, como dito, o Manual de Crédito passou por algumas alterações e, em especial, o item 2.6.9, transformou-se no item 2.6.4, passando assim a estabelecer:

MCR 2.6.4 – Fica a instituição financeira autorizada a prorrogar a dívida, aos mesmos encargos financeiros pactuados no instrumento de crédito, desde que o mutuário comprove a dificuldade temporária para reembolso do crédito em razão de uma ou mais entre as situações abaixo, e que a instituição financeira ateste a necessidade de prorrogação e demonstre a capacidade de pagamento do mutuário:

  1. a) dificuldade de comercialização dos produtos;
  2. b) frustração de safras, por fatores adversos;
  3. c) eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações.

De início, percebe-se a primeira alteração: a palavra “devida” foi substituída pela palavra “autorizada”.

Outra alteração substancial diz respeito a sua parte final, que assim passou a dispor: “e que a instituição financeira ateste a necessidade de prorrogação e demonstre a capacidade de pagamento do mutuário”.

Em uma interpretação singela, poderíamos defender a tese de que a instituição financeira, a partir de agora, está autorizada, e não mais obrigada, a prorrogar o crédito rural. Ou seja, caso negasse a repactuação do contrato, mesmo que comprovado qualquer de seus requisitos pelo produtor (que continuam os mesmos), arbitrariedade alguma estaria cometendo.

Isso porque, o disposto no Manual é muito claro: ATESTANDO a necessidade de prorrogação, a instituição estará AUTORIZADA a assim proceder. E mais, caberá a ela própria demonstrar a capacidade de pagamento do mutuário (devedor).

Em resumo: pelo Manual de Crédito, caberá a instituição verificar se, de fato, é necessário a repactuação e, mesmo verificando tal necessidade, não será obrigada a assim proceder, mas, sim, estará autorizada.

E o pior: referido Manual não traz critérios que devem ser levados em consideração pela instituição financeira a fim de estabelecer quando será, ou não, devido a repactuação, deixando, a princípio, a livre arbítrio.

Porém, em uma interpretação sistemática, não é a tese correta a ser defendida.

Isso porque, preenchido qualquer dos requisitos previstos no próprio manual (quebra de safra por geada, por exemplo), a instituição financeira continua, sim, sendo obrigada a prorrogar o contrato de crédito rural, nos mesmos moldes incialmente pactuados, sem a cobrança de quaisquer penalidades e/ou juros moratórios.

E tal conclusão é obtida, pois, o crédito rural vai muito além de um “mero financiamento”.

Ora, é dever do Estado “fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar”[ii].

Assim, a obrigação do Estado em fomentar a produção agropecuária inclui, além do fornecimento de créditos com melhores condições, a possibilidade de renegociação em caso de impossibilidade de pagamento por fatores adversos, dentre eles, quebra de safra, nos mesmos moldes inicialmente pactuados.

A duas, pois, conforme dispõe o art. 5° da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro[iii], o Juiz, na aplicação da lei, atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Evidente que a alimentação, além de ser um direito social[iv], é uma exigência mínima do bem comum. Sem alimento, inexiste vida.

Portanto, como o objetivo do Manual de Crédito é regulamentar o crédito rural que, diretamente, influencia na exigência do bem comum, que é o alimento, sem o crédito, a atividade agropecuária fica comprometida e, consequentemente, a alimentação também, motivo pelo qual, a prorrogação do crédito, em casos devidamente comprovados, também deve ser observada e respeitada, sob pena de comprometer, de igual modo, os fins sociais e o bem comum.

Após o exposto, continuamos defendendo que, em que pese as mudanças recentes no Manual de Crédito Rural, o produtor continua tendo o direito a prorrogação do crédito rural, nos casos devidamente comprovados, a exemplo da quebra de safra.

Mas reitera-se: o produtor deve comprovar as hipóteses previstas no Manual, das quais lhe dão o direito a prorrogação, sob pena de indeferimento, tanto no âmbito administrativo, como no âmbito judicial[v]. Não só deve comprovar as hipóteses previstas, como deve seguir o procedimento adequado, sob pena de, também, ser indeferido. 

Portanto, é extremamente aconselhável que, em situações como tais, o produtor esteja devidamente assessorado, inclusive com seu advogado, se possível, pois, uma conduta errada pode trazer sérios prejuízos, quiçá, irreparáveis!

*Leonardo Scopel Macchione de Paula é advogado em Jataí (GO)

[i] Câmara Municipal de Jataí. Disponível em: <https://www.jatai.go.leg.br/materia/18325>. Acessado em 17 de agosto 2021.

[ii] CF/ 88 – Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

VIII – fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar

[iii] DL 4.657/42 – Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

[iv] CF/ 88 – Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

[v] (i) (TJGO. Quarta Câmara Cível. AI 5291219-38.2019.8.09.0000. Relª. Desª. Elizabeth Maria da Silva. Ac. 30/09/2019), (ii) (TJGO. Sexta Câmara Cível. AC 5280226- 96.2020.8.09.0000. Rel. Des Jairo Ferreira Junior. Ac. 10/08/2020), (iii) (TJGO. Quinta Câmara Cível. AC 0418153-97.2009.8.09.0026. Rel. Des. Itamar de Lima. Ac. 036/11/2017), (iv) (TJGO, PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO -> Recursos -> Apelação Cível 0211834-46.2014.8.09.0051, Rel. Des (a). SANDRA REGINA TEODORO REIS, 6ª Câmara Cível, julgado em 01/03/2021, DJe de 01/03/2021).