Alienação fiduciária e recuperação judicial

advogado renaldo limiroTodas as garantias são sempre bem-vindas em todas as situações. E ainda, mesmo que seja uma garantia pessoal e não represente muito em termos econômicos, subsiste para o garantidor os efeitos jurídicos negativos de uma inscrição nos serviços de proteção ao créditão, o que, de certa forma, é constrangedor, e pode induzi-lo a mexer-se no sentido de livrar-se de tal situação. A par dessas garantias pessoais ou fidejussórias (aval, fiança, caução, entre outros), existe o direito real de garantia, que, segundo o Mestre Orlando Gomes, é aquele que confere ao seu titular o poder de obter o pagamento de uma dívida com o valor ou a renda de um bem aplicado exclusivamente à sua satisfação, ou seja, tem a finalidade de garantir ao credor o recebimento do débito. A garantia fiduciária é, portanto, um direito real.

O instituto sob estudos teve maior prevalência quando, a partir do ano de 1969, o Decreto-Lei número 911 alterou a redação do artigo 66 da Lei 4.728/1965, estabelecendo normas sobre a alienação fiduciária em garantia, através da qual se “transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal”. Quase 20 anos depois, através da Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, foi instituída a alienação fiduciária de coisa imóvel, definindo-a como sendo o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.

Por fim, a Lei 10.931, de 2004, alterou o disposto na Seção XIV da Lei 4.728/1965, até então vigente sob o título “Alienação Fiduciária em Garantia”, passando, em conformidade com o criado artigo 66-B, para a denominação de Alienação Fiduciária em Garantia no Âmbito do Mercado Financeiro e de Capitais, em cuja redação do § 3o diz que “é admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito”, e que, nessas modalidades, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, e que este, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial.

Ora, sendo o instituto da Alienação Fiduciária em suas diversas modalidades um direito real de garantia, ou seja, “aquele que confere ao seu titular o poder de obter o pagamento de uma dívida com o valor ou a renda de um bem aplicado exclusivamente à sua satisfação”, significa isto uma vinculação exclusiva do bem móvel ou imóvel, da coisa fungível, da cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, assim como da cessão fiduciária de títulos de crédito à operação pactuada. E mais que isto, o credor torna-se, a partir de então, titular da posição de proprietário fiduciário dos respectivos bens.

É por isso, aliás, que o § 3o do artigo 49 da Lei 11.101/05 (LFRE), é peremptório ao dizer que “tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis… seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva”. Sim, o credor é proprietário do bem segundo a Lei, pois esta lhe transfere a propriedade resolúvel daquele bem (móvel ou imóvel) , querendo com isto dizer que se a obrigação não for cumprida pelo devedor, esta – a transferência da propriedade -, se opera (cada qual obedecida a respectiva legislação, conforme acima). Numa síntese simplistas, os créditos dessa natureza – Alienação Fiduciária -, em suas diversas modalidades, não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial.

Muito embora ser assim deste o princípio – 09 de junho de 2005, data de vigência da Lei 11.101/05 -, muitas discussões e opiniões divergentes, seja através de artigos doutrinários e até mesmo em obras jurídica, encheram diversas páginas de livros. O Judiciário brasileiro também se encaminhou por este trilhos pedregosos, e muitos escorregões foram cometidos por magistrados singulares e integrantes de colegiados, até que o tema chegou ao Egrégio Superior Tribunal de Justiça que, finalmente, deu-lhe o correto entendimento, colocando, de vez, o trem sobre os trilhos.

Só o seguinte exemplo nos demonstra o quanto a questão sob estudos levou muitos operadores Só o seguinte exemplo nos demonstra o quanto a questão sob estudos levou muitos operadores do direito a se equivocarem sobre sua correta interpretação, sendo que uns iam à frente emitindo suas opiniões e outros, atrás, seguindo-os, e, por óbvio, cometendo o mesmo erro. Referimo-nos, dentre dezenas, ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pois, o primeiro a criar Câmaras Especializadas para o conhecimento e julgamento das questões originárias da Lei número 11.101/05 (LFRE), que, decorrentemente de diversos julgamentos no mesmo sentido, criou uma súmula, a de número 60, que diz que a propriedade fiduciária constitui-se com o registro do instrumento no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor. Não é esse, todavia, o correto entendimento. Somente a propriedade fiduciária sobre imóvel é que constitui-se mediante registro do respectivo contrato no Cartório de Registro de Imóveis do Foro do imóvel alienado (art. 23 da Lei 9.514/97).

Quanto às demais modalidades do instituto da alienação fiduciária, inclusive a enfocada pela Súmula número 60 do Egrégio TJSP (oriunda de cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis e de títulos de crédito), o STJ, em reiteradas decisões, já pacificou que “… 3.2 Efetivamente, todos os direitos e prerrogativas conferidas ao credor fiduciário, decorrentes da cessão fiduciária, devidamente explicitados na lei (tais como, o direito de posse do título, que pode ser conservado e recuperado ‘inclusive contra o próprio cedente’; o direito de ‘receber diretamente dos devedores os créditos cedidos fiduciariamente’, a outorga do uso de todas as ações e instrumentos, judiciais e extrajudiciais, para receber os créditos cedidos, entre outros) são exercitáveis imediatamente à contratação da garantia, independente de seu registro. 3.3 Por consectário, absolutamente descabido reputar constituída a obrigação principal (mútuo bancário, representado pela Cédula de Crédito Bancário emitida em favor da instituição financeira) e, ao mesmo tempo, considerar pendente de formalização a indissociável garantia àquela, condicionando a existência desta última ao posterior registro”.(…) (Parte da Ementa do REsp 1412529 / SP, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 3a Turma, DJe 02/03/2016). (grifos nossos).

É, por fim, mais um acerto dos rumos da Lei número 11.101/05 (Falências e Recuperação de Empresas) que o STJ brinda a todos os operadores do direito.

*Renaldo Limiro é advogado especialista em Recuperação Judicial. Autor das obras A Recuperação Judicial Comentada Artigo por Artigo, Ed. DelRey; Recuperação Judicial, a Nova Lei…, AB. Editora; e, Manual do Supersimples, com Alexandre Limiro, Ed. Juruá. www.limiroadvogados.com.br; www.recuperacaojudiciallimiro.com.br