Abandono material, afetivo e intelectual: breves considerações sob os aspectos cível e penal

*Kelly Lisita Peres

A legislação penal brasileira tipifica vários delitos,dentre eles existem alguns que geram marcas que refletem no Direito de Família e são uma verdadeira afronta à Constituição Federal.

Assunto sério,pouco conhecido por boa parte dos cidadãos,mas infelizmente vivenciado por pessoas de toda a parte do mundo.A palavra abandono remete-nos á ideia de não dar importância, fazer pouco caso.

Toda e qualquer forma de abandono é indubitavelmente dolorida e inquestionavelmente marcante para quem figura no polo passivo de uma relação por vezes carente de atenção e cuidados.As consequências são mais consideráveis quando envolvem crianças e adolescentes.

O abandono afetivo, material e o intelectual são assuntos sérios e merecedores de muita atenção e análise minuciosa por que geram sequelas de natureza física e psicológica para muitas pessoas e envolvem não somente a questão financeira como também a emocional. São turbilhões de sentimentos que se misturam,são questionamentos e indagações.

O denominado abandono intelectual é um crime tipificado no artigo 246 do Código Penal e ocorre quando o pai, mãe ou responsável legal deixa, sem justa causa, de garantir a educação primária de seu filho.A objetividade jurídica recai sobre o direito dos filhos menores de terem acesso à informação, ao aprendizado,à cultura.Válido destacar a expressão “justa causa”como elemento normativo do tipo penal,para a caracterização do delito e aplicabilidade da pena.A tentativa ou conatus não é admissível.

Já por educação primária acredita-se que a idade escolar é compreendida dos 04 até 18 anos incompletos.A maioridade civil e penal é aos 18 anos e sendo o indivíduo portador de desenvolvimento mental normal diz-se que o mesmo é maior e capaz, o critério biopsicológico do Direito Penal argumenta nesse sentido.

À luz do artigo 1.634 do Código Civil compete aos pais em relação aos filhos menores, dirigir-lhes a criação e a educação,exercendo por sua vez o poder familiar cumprindo com seus deveres e direitos no que pertine aos filhos menores ou maiores incapazes.Seja na guarda unilateral como na guarda compartilhada ambos genitores devem zelar pelos filhos e ser garantes dos mesmos em todos os sentidos:de proteção e responsabilidade.Poder familiar é expressão atualmente utilizada para denominar o conjunto de deveres e direitos dos pais na criação de seus filhos.

Antigamente era usada a expressão “pátrio poder” ao invés de poder familiar.Quando a responsabilidade recai sobre algum parente dizemos haver a “Autoridade Parental”. Outras pessoas ao exercerem a tutela ou curatela detém a chamada responsabilidade legal, independentemente se são parentes ou não.

A tutela e a curatela são denominadas de múnus público e decorrem do princípio da Solidariedade para o Direito de Família, enquanto a primeira protege o menor cujos pais foram destituídos do poder familiar, foram declarados ausentes ou ainda vieram a óbito, a segunda protege o maior incapaz de forma transitória ou não.Ambos institutos são deferidos em ações judiciais próprias.

É importante mencionar que é constitucional o direito de todos à educação dentre outros. Pais e mães tem a obrigação no âmbito moral e legal de matricularem seus filhos em idade escolar, de acompanharem-nos em tarefas e reuniões escolares, o artigo 227 da Constituição Federal explicita de forma clara o dever da família, do Estado e da sociedade.

O artigo 244 do Código Penal descreve o abandono material que consiste na recusa de forma injustificada daquele que deve pagar,ou seja, de prover materialmente com o necessário para a subsistência da vítima,como deixar de pagar pensão alimentícia judicialmente acordada ou fixada, ou deixar de socorrer ascendente(Pais) ou descendente(Filho) sem justa causa,sendo que a vítima pode ser cônjuge,convivente, ascendente portador de necessidade especial ou maior de sessenta anos,sem excetuarmos o filho menor de dezoito anos ou inapto para o trabalho.A conduta do autor deve ser reiterada e a observação recai no elemento normativo”sem justa causa”.Não se poderia incriminar um filho maior e capaz que é presente na vida dos pais mas não possui muitos recursos financeiros capazes de ajudar-lhes.

Já a pensão alimentícia compreende a alimentação, vestuário, lazer, remédios, materiais escolares e deve ser estipulada analisando o chamado binômio: necessidade de quem a pleiteia e possibilidade de quem vai pagá-la.É, porém, importante mencionar que quando judicialmente acordada, deve ser paga para que não haja a tipificação no 244 do Código Penal, quando de forma injustificada e reiterada o devedor não a cumpre.

Existem três ações nucleares ou condutas que são: frustrar o pagamento da pensão alimentícia, não socorrer ascendente ou descendente gravemente enfermo ou ainda injustificadamente deixar de prover a subsistência da vítima.O delito é omissivo próprio (Praticado mediante um deixar de fazer e é próprio porque algumas pessoas específicas é que podem ser sujeitos ativos, ou seja autoras) e não admite a conatus, ou seja a tentativa.

Outra forma de abandono intelectual por partes dos pais ocorre quando os mesmos permitem que o menor frequente casas de jogo ou conviva com pessoa viciosa ou de má-vida, que frequente espetáculo capaz de pervertê-lo, que resida ou trabalhe em ambientes impróprios, que mendigue ou sirva de mendigo para excitar a comiseração pública.Enfim, há várias possibilidades de praticar o delito em questão e não poderíamos deixar de citar que a evasão escolar também é uma das consequências do mesmo.

O dolo é o elemento subjetivo, significa que a pessoa autora age de forma intencional, que há o conhecimento da conduta e do resultado, que é lesivo e ainda assim o agente opta pela prática do fato. A questão ainda é mais séria porque envolve sentimentos da vítima e os efeitos acabam por refletir na estima, saúde física e mental da mesma, sem excetuarmos o quão horrendo é o fato em sí.Imaginemos um filho maior e capaz e tendo condições financeiras, não acudir o pai idoso e portador de doença degenerativa como o Alzheimer, não o levar ao médico, não comprar remédio!

E quanta falta de consideração quando o devedor de pensão frustra propositadamente a mesma no que pertine ao filho menor! Alguns devedores largam o emprego só para não a pagar.São demandas envolvendo pessoas que desaparecem para não pagar a pensão ou então mentem em relação a salário, gastos para pedir minoração ou exoneração da pensão.

O assunto pensão alimentícia na maioria das vezes envolve lide entre as partes e infelizmente o devedor de pensão de filho menor esquece que a pensão é direito e não favor e que ainda que o outro genitor tenha boas condições financeiras, sobrevive e com muita força o dever de cada um deles contribuir na criação do filho.Nem a multiparentalidade exclui essa responsabilidade dos genitores consanguíneos.

É de suma importância esclarecer que pagar pensão não é ser pai ou mãe, para criar a prole faz-se necessário a presença, a preocupação e o interesse na vida dos filhos, em seu dia a dia, em seus problemas, conquistas e vitórias.

Existem muitas diferenças entre ser genitor e ser pai ou mãe. Divórcio dissolve a sociedade conjugal e não a que sempre existirá ou pelo menos deveria existir sempre entre pais e filhos e que colocar filhos no mundo e não criar consiste apenas no fato de ser genitor ou ser genitora.Carinho e amor são vividos, são construídos ao longo do tempo, a cada dia, nas conversas, nas trocas de olhares, sorrisos, conselhos e até na “chamada de atenção”entre pais e filhos.
Os relacionamentos maternal e o paternal são formados pela convivência e o apoio, o sustento emocional acima de qualquer coisa.O abandono tem punibilidade e efeitos.

Indubitavelmente todos esses delitos abalam a estima e declaram a olhos vistos que o respeito, o carinho, a gratidão por vezes não tem muito espaço na vida do autor do fato delituoso em questão.
As consequências para a vítima são o uso de remédio para curar depressão, crise de ansiedade, psicoterapias para auxiliar no tratamento da insegurança, baixa estima.

Já para os ascendentes, em sua maioria, a sensação de descaso e falta de amor é a grande colaboradora para a inexistência da vontade de viver, falta de apetite, desânimo e tristeza infindável.

A pena para o abandono material é de um a quatro anos e multa de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no país, não se tratando, pois, de crime de menor potencial ofensivo.Informalmente espera-se a cobrança por parte da consciência do sujeito ativo do delito em questão.

No que concerne ao Direito Civil, não pagar a pensão alimentícia judicialmente acordada ou fixada enseja prisão por até 90 dias do devedor inadimplente, negativação do nome e bloqueio em conta através de ordem judicial.Trata-se de não cumprimento de obrigação de dar, que é civilista e também configura descumprimento a ordem judicial.

O abandono afetivo difere do material e do intelectual, mas aproxima-se muito do mesmo quando por exemplo um dos genitores paga a pensão e não tem o mínimo de carinho pelos filhos, não a procura ou se faz presente na vida dos mesmos.É comum e triste simultaneamente o fato de alguns genitores não pagarem a pensão e consequentemente não serem presentes.

A legislação civilista inclusive faz uma observação importante no que concerne a chamada verdade real e verdade biológica.Explicando podemos dizer que a primeira recai sobre a filiação multiparental e a segunda sobre a filiação consanguínea.Lamentavelmente muitas pessoas não conheceram seu genitor ou genitora ,no entanto tiveram a esposa do pai que figurou como mãe ou o esposo da mãe que figurou como o pai e então é mais justo e compreensível que essas pessoas busquem o reconhecimento da multiparentalidade a busca da verdade biológica.Óbvio que existem pessoas que ainda buscam a verdade consanguínea e isso é um direito que lhes confere.

Afetivamente o abandono gera no campo jurídico ação indenizatória conforme o artigo 186 do Código Civil e que é rodeada por questionamentos que envolvem o fato de que ninguém é obrigado ou obrigada a gostar de quem quer que seja, mas há o interesse e o emocional de uma pessoa, seja criança ou adolescente que nada tem a ver com problemas entre seus genitores ou da imaturidade de um deles. O abandono afetivo constitui descumprimento do dever legal de cuidado, criação, educação e companhia presente, previstos implicitamente na Constituição Federal, que é a nossa Carta Magna.

Pais devem amparar filhos e não criar um sentimento de vazio nos mesmos.

São tantas mudanças na forma de vida e na construção das famílias que o Direito precisava acompanhar tanta evolução e ampliar seus conceitos, suas idéias, como ocorreu com o justo reconhecimento da multiparentalidade, dos filhos adotivos e sua igualdade com os biológicos, dos conviventes na união estável, dentre outros, uns mais recentes e outros anteriores.

Seja qual for a espécie de abandono, é importante esclarecer que valores morais estão muito além dos financeiros, que ajudam a sobreviver, óbvio, mas não se sobrepõem aos primeiros por não proporcionarem às pessoas nobres sentimentos tais quais: amor, companheirismo e gratidão!

Que por maior ou menor a pena a ser aplicada ao delito, a pior delas deve advir da consciência de que os filhos não são objetos ou bonecos, são pessoas com sentimentos e quando menores necessitam de auxílio constante, de orientação, de assistência médica, hospitalar, de carinho, educação e atenção.Nascem sem saber andar e falar,são dependentes de quem os teve, para tudo!

Dever é de pai e mãe, o caminho aos pupilos deve ser apontado por eles, preparado com explicações e orientações.Filhos são bênçãos e em sua maioria, grandes seguidores dos exemplos dos pais.
Quem ensina o amor oferecendo-o, acabará por recebê-lo, logo quem faz-se ausente jamais poderá cobrar aquilo que nunca ofereceu, ou seja, o amor, o companheirismo, a dedicação.

Ter filhos, sejam biológicos ou do coração, requer maturidade e preparo. São pessoas que chegam para aprender e também para ensinar o significado do verdadeiro amor!

*Kelly Lisita Peres é advogada, professora universitária, especialista em Docência Universitária, Direito Penal e Direito Pricessual Penal.