Marcos Vinícius Souza de Oliveira*
“A ganância é um poço sem fundo que exaure a pessoa em um esforço interminável para satisfazer a necessidade sem jamais alcançar a satisfação.”
Erich Fromm
O que Fromm enxergou como falha humana, o sistema bancário brasileiro institucionalizou como estratégia. Bancos têm mascarado crédito rural com a roupagem de Cédula de Crédito Bancário (CCB), violando a legislação, o bom senso e a boa-fé. Abusam do desconhecimento de grande parte dos produtores rurais sobre seus direitos para esfolá-los com juros extorsivos. Em um cenário em que o preço dos insumos está nas alturas e as commodities sofrem queda brusca, tal prática compromete a margem de lucro do produtor, inviabiliza o pagamento de suas despesas e, em muitos casos, aumenta o seu endividamento.
Não é falta de informação. É puro oportunismo. Cientes da necessidade, muitas vezes, imediata, do homem do campo de obter financiamento para sua produção, apresentam contratos rotulados como Cédula de Crédito Bancário (CCB), mas com cláusulas que revelam a destinação dos recursos ao custeio ou investimento agrícola. Com essa manobra, impõe ao produtor juros acima do limite legal, não sendo difícil encontrar empréstimos com taxa de juros em 15, 17, 20, 22% ao ano.
Montantes bem superiores aos previstos na legislação. Essa trama é incompatível com o Decreto-Lei n° 167/67 e a Lei n° 4.829/65, que regulam o crédito rural e impõem limites claros de juros e encargos que podem incidir sobre referido crédito. A legislação é clara: finalidade rural exige contrato rural. Mas os bancos, cientes de sua força negocial e da vulnerabilidade do produtor rural na obtenção de crédito para fomentar a sua atividade, impõem CCBs com taxas muito acima dos 12% ao ano, ignorando os parâmetros legais[1].
Contudo, no Direito, a essência do contrato prevalece sobre sua forma. Assim, mesmo que o instrumento seja denominado de Cédula de Crédito Bancário, se os recursos são destinados à atividade rural, deve ser aplicado o regime jurídico do crédito rural. A prática de mascarar operações de crédito rural como CCBs tem implicações jurídicas significativas. Além de violar princípios como da boa-fé objetiva e função social do contrato, essa conduta é abusiva e passível de revisão judicial.
APELAÇÃO CÍVEL – EMBARGOS À EXECUÇÃO – ARGUIÇÃO DE NULIDADE DA SENTENÇA POR JULGAMENTO EXTRA PETITA E CERCEAMENTO DE DEFESA À FALTA DE PROVA PERICIAL – INOCORRÊNCIA – PROVA PERICIAL REDUNDANTE E DESNECESSÁRIA – ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE EXECUÇÃO – TÍTULO FORMALMENTE NOMINADO DE CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO – CRÉDITO CONCEDIDO DE MODO VINCULADO PARA AQUISIÇÃO DE IMPLEMENTOS AGRÍCOLAS A SEREM UTILIZADOS NA PROPRIEDADE RURAL DA DEVEDORA, INCLUSIVE COM CONSTITUIÇÃO DE GARANTIA REAL PIGNORATÍCIA RECAINTE SOBRE OS IMPLEMENTOS AGRÍCOLAS FINANCIADOS – OPERAÇÃO DEFINIDA PELA DESTINAÇÃO DO CRÉDITO, E NÃO PELA ENGANOSA NOMINAÇÃO FORMAL DO TÍTULO – OPERAÇÃO DE CONCESSÃO DE CRÉDITO AGRÍCOLA – CARACTERIZAÇÃO DE CÉDULA DE CRÉDITO RURAL – INCIDÊNCIA DAS NORMAS DO DEC.-LEI 167/1967 – SENTENÇA REFORMADA – RECURSO DA DEVEDORA/EMBARGANTE PROVIDO PARCIALMENTE E RECURSO DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DESPROVIDO. (…)[2]
Além de juros remuneratórios abusivos, as casas bancárias estão violando as normativas de crédito rural no que tange aos juros moratórios e multa por inadimplemento. Tal prática exige uma maior atenção do produtor no momento da celebração do pacto e, caso entenda pertinente, a contratação de assessoria jurídica especializada, para analisar suas cédulas já pagas, as vigentes e aquelas que, eventualmente, esteja inadimplente.
O regime protetivo do crédito rural não é um privilégio dado ao produtor rural, é o reconhecimento do constituinte da necessidade desta atividade para a concretização dos objetivos da República Federativa do Brasil[3]. Por conta disso, deve ser observado e respeitado.
É imperativo que o Judiciário fique mais atento a essas práticas das instituições financeiras para, quando provocado, requalifique os contratos conforme sua real natureza. Garantindo, dessa forma, a observância das normas específicas do crédito rural, para dar mais tranquilidade aquele que dia e noite fomenta o crescimento do país e, principalmente, coibindo abusos decorrentes da ganância disfarçada de formalidade.
*Marcos Vinícius Souza de Oliveira (@marcosdeoliveira.adv) é advogado na Álvaro Santos Advocacia. Foi assessor de juiz no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) na área cível por quase uma década. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás.
[1] A competência para fixação da taxa de juros dos créditos rurais é do Conselho Monetário Nacional (CMN), conforme artigo 5° do Decreto-Lei n° 167/1967. Mas, por ausência de sua deliberação, a jurisprudência é assente que os juros remuneratórios nas cédulas de crédito rural devem respeitar o limite de 12% ao ano previsto no Decreto n° 22.626/1933.
[2] TJMT, N.U 1037025-60.2019.8.11.0041, CÂMARAS ISOLADAS CÍVEIS DE DIREITO PRIVADO, JOAO FERREIRA FILHO, Primeira Câmara de Direito Privado, Julgado em 24/11/2020, Publicado no DJE 15/02/2021.
[3] Art. 3°, CF.