Programa acompanha réus submetidos à medida de segurança em Goiás

Digna de um roteiro de filme, a história de Luiz Alberto Rodrigues começou a ter um rumo diferente a partir dos oito anos de idade quando resolveu sair da casa da mãe, onde se sentia infeliz. Nos anos seguintes, seu dia a dia era preenchido pelo cheiro da cola que dava a ele a sensação de uma felicidade efêmera e as noites mal dormidas nas ruas da capital.

Fez amizades com outras crianças de rua, já passou por brigas em que teve tinner jogado nos olhos que comprometeu sua visão e já foi preso por furto. Após decisão judicial, foi encaminhado ao Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili). Criado em 2006, o programa é subordinado à Secretaria Estadual da Saúde e veio para substituir os manicômios judiciários e hospitais de custódia. Mas como funciona?

Vamos supor que uma pessoa cometeu um crime e será julgada. Desconfiando-se que esta pessoa tem alguma doença mental, ela passará pela perícia médica da Junta Médica do Tribunal de Justiça de Goiás que fará um laudo. Baseado neste laudo, o juiz vai avaliar se absolve ou não. Sendo doente e se, pela doença, a pessoa não tinha entendimento do que fez naquele momento do crime, ela será absolvida e será aplicada a medida de segurança.

Conforme explica a psiquiatra do Paili, Manuella Rodrigues, a medida de segurança é uma sentença, mas não é considerada uma pena. “Não tem caráter punitivo. É um tratamento”. Em outros estados o habitual é ser encaminhado ao manicômio judiciário. Segundo a coordenadora do Paili, Maria Aparecida Diniz, muitas pessoas são tratadas nestes locais há décadas e muitas vezes esquecidas.

Apesar de em muitos estados ainda prevalecer a internação em manicômios judiciários e até mesmo em Goiás muitos juízes optarem por esta decisão, a psiquiatra Manuella comenta que o Paili provoca uma mudança de paradigma e isso demanda tempo para ser aceito. Para ela, há três vantagens visíveis do programa para o Estado e as pessoas envolvidas.

“Primeiro é financeiramente. De fato, a estrutura do Paili, aproveitando-se uma rede que já existe é mais fácil do que se criar uma estrutura de hospital”. Ou seja, a equipe do Paili supervisiona o tratamento indicado ao paciente na rede de atenção em saúde mental em locais que já existem como em Centros de Atenção Psicossocial (Caps), leitos psiquiátricos em hospitais gerais, clínicas psiquiátricas conveniadas ao SUS.

Outro ponto ressaltado por Manuella é juridicamente. “Aí a gente tem um contrassenso. Se eu falo que medida de segurança não é punição é um contrassenso eu manter esses indivíduos presos tolhidos de uma série de direitos. Tanto que existe um movimento para trocar o nome de medida de segurança para medida terapêutica. Se é tratamento, eu não posso tratá-lo de forma diferente quem tem doença mental”.

E a terceira ressalva é na área da saúde. “Está mais do que entendido que o tratamento em isolamento prejudica e piora qualquer doença mental. O tratamento deve focar em inserção na sociedade e o hospital segrega”, diz Manuella. A gerente de Saúde Mental da SES, Nathália dos Santos, acrescenta que quando as alternativas terapêuticas não funcionaram, aí sim poderá utilizar da internação em situações pontuais e por tempo limitado.

Para o idealizador do Paili, o promotor de Justiça Haroldo Caetano, o programa é a principal e mais adequada política pública em todo o País para lidar com a pessoa em medida de segurança. “Com o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator, o Estado de Goiás aboliu definitivamente qualquer possibilidade de utilização da internação em manicômio judiciário. As controvérsias resultam, no mais das vezes, do desconhecimento do assunto e da prática anterior, que levava homens e mulheres ao aprisionamento perpétuo em manicômios. Antes havia a ideia de que lugar de louco é no hospício. Os tempos são outros e a Lei Antimanicomial veio afirmar a pessoa com transtorno mental como sujeito de direitos. Vale lembrar que o Paili atua nos casos de medida de segurança, ou seja, nos processos em que o juiz absolve o réu por conta do transtorno mental. Os pacientes do programa não são condenados mas, por conta da doença mental, devem ser acompanhados e tratados, sempre com o objetivo de inclusão na família e na sociedade”, explica.

Funcionamento
Após decisão judicial encaminhando o indivíduo ao Paili, lá é recebida a documentação, pesquisa-se o histórico e após o estudo de todo o processo, são discutidas as possibilidades terapêuticas para cada caso, utilizando-se a Lei 10.216 de 2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica), onde o atendimento tem de ser dado no meio mais próximo do paciente, que atenda aos princípios do SUS e que os direitos humanos sejam respeitados.

O Paili conta com uma equipe multiprofissional formada por psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, enfermeiras, que acompanham este paciente na rede municipal. Também é responsável por fazer a mediação entre o paciente e o juiz, fazendo relatórios de comportamento do paciente. A equipe acompanha o doente mental até o final da medida de segurança.

Maria Aparecida esclarece que o fim dessa medida de segurança acontece apenas em relação à Justiça. “Doença mental não tem cura”. Quando o paciente está sendo acompanhado pela rede de saúde , pode contar com o apoio da família e já está mais estável aos olhos dos profissionais do Paili, eles pedem o fim da medida de segurança. No Paili tem pacientes há cinco anos em tratamento. Os projetos terapêuticos vão mudando de acordo com a necessidade individual.

A gerente de Saúde Mental da SES, Nathália dos Santos, acrescenta que além do paciente, a família também precisa de um suporte da área da saúde municipal. “Há sofrimento do estigma na família também. O Paili encaminha a família para rede e a equipe de saúde está orientada de que esta família precisa de ajuda também”. Não adianta levar o indivíduo para a família de uma vez, porque também pode não saber lidar com o parente. De forma gradual, há um processo de reinserção nessa família e na sociedade para o resgate do vínculo.

Segundo a psiquiatra Manuella, a recaída da doença é esperada, como por exemplo o surto. “Isso não é problema jurídico. É de saúde e é preciso ter o amparo em cada fase”. Já a reincidência criminal fica em, aproximadamente, 5%. Um exemplo que ficou conhecido foi o caso do Cadu que matou o cartunista Glauco.

Caso Cadu
Segundo Haroldo, este caso é grave e levou famílias ao luto e isso deve ser respeitado. “No que diz respeito ao funcionamento do Paili, convém lembrar que o Programa não recebe condenados, mas pessoas absolvidas pelo Judiciário. Quem está no Paili não cumpre pena. Esse era o caso de Carlos Eduardo Sundfeld, o Cadu, que era acompanhado pela Rede de Atenção Psicossocial (Raps), onde vinha recebendo suporte psicossocial adequado”.

Ele explica que Cadu praticou crimes enquanto era acompanhado pelo Paili, mas não se pode imputar ao Programa qualquer falha, pois a Raps estava atuando. “O Paili não poderia jamais ser julgado apenas por um caso dentre outros quinhentos casos tão graves e importantes quanto aquele. Tanto que o índice de reincidência é baixíssimo, em torno de 5%, e, em 10 anos de existência, o Paili teve somente dois casos de reincidência em homicídio, um deles o caso Cadu”.

Ele acrescenta que o Programa precisa, como qualquer política pública, de constante e contínuo aperfeiçoamento. “Se por um lado o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator é o mais importante do Brasil, isso não significa que esteja pronto e acabado. Pelo contrário, precisa crescer, ser melhor estruturado e receber mais recursos humanos e materiais”.  Para o Paili já foram encaminhadas 495 pessoas. Atualmente, atende 316.

O Luiz Alberto
A história de Luiz Alberto – aquele do início da matéria, realmente renderia um filme, mas com meio e, final, quem sabe, felizes! Após ser ajudado pelo Paili, Luiz Alberto, hoje com 33 anos, tem uma história da qual se orgulha. Foram 22 anos morando na rua. Ele não nega que já deu muita preocupação à tia Cida, como chama carinhosamente a coordenadora do Paili, Maria Aparecida. “Ixi, já dei muito trabalho. Eu achava que na rua era feliz, mas hoje percebo que não”.

Com a ajuda dos profissionais do Programa e outras almas generosas, ele mora em uma casa no fundo da residência da avó. Tem televisão, guarda-roupa e aos poucos vai montando seu cantinho. Ganha dinheiro vigiando carros e se cuida indo ao Caps para tratamento. Para o futuro? Ele é categórico: quer namorar e ter uma lanchonete. “Uma não, cinco lanchonetes”. Fonte: Notícias de Goiás