ABMCJ atuou na ADPF que excluiu a tese da legítima defesa da honra dos casos de feminicídio

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A atuação da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ) no julgamento da Ação Declaratória de Preceito Fundamental nº 779, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi um fato inédito na história da entidade. Na ADPF 779, protocolada pelo Partido Democrático Trabalhista, os 11 ministros votaram pela inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio.

A ABMCJ foi admitida no processo na condição de amicus curiae (da tradução em latim, amigo da corte). Na petição, que foi aceita pelo STF, as advogadas Eliana Calmon e Alice Bianchini argumentam que o artigo 138, do Código de Processo Civil, permite a participação no processo de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada com representatividade adequada.

“A situação inspira cautela e reflexão, sobretudo pela total afronta ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. A relevância da matéria justifica a admissão da Associação das Mulheres de Carreiras Jurídicas no feito, notadamente, em razão da sua finalidade institucional. Isso porque o pleito ora apresentado, em sendo admitido, possibilitará o resgate da condição da mulher na sociedade brasileira, resguardando, assim, o Estado Democrático de Direito, que aqui se instalou com o advento da Constituição de 1988”, explicam as advogadas.

A goiana Manoela Gonçalves é presidente da ABMCJ

A presidente da ABMCJ, advogada goiana Manoela Gonçalves, afirma que a participação da entidade na ação é salutar, recomendável e de interesse de toda a sociedade, na medida em que envolve a discussão acerca da dignidade da mulher vítima de feminicídio. O Brasil é o quinto país no mundo em índices de mortes de mulheres, e reinserir no sistema jurídico brasileiro a tese da legítima defesa da honra é um retrocesso. No País, a Lei 13.104/2015 criou a figura do feminicídio, mais uma qualificadora do crime de homicídio, nos casos de morte de mulher por razões da condição de sexo feminino.

Na petição, Eliana Calmon e Alice Bianchini citam a Organização dos Estados Americanos (OEA), que “considera o feminicídio como a expressão mais extrema e irreversível de violência e discriminação contra mulheres, que atenta radicalmente a todos os direitos e garantias estabelecidos nas leis internacionais e nacionais sobre direitos humanos. Este crime é um ato de ódio que distorce de forma extrema todo o sentido de humanidade. Consolida no tempo a visão hegemônica masculina sobre as mulheres como propriedade, objeto de transgressão e símbolo de fraqueza, reforçando a configuração da estrutura de poder do sistema patriarcal de dominação”.

Legítima defesa da honra

Por unanimidade, o STF firmou entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. A decisão, tomada na sessão virtual encerrada em 12 de março passado, referendou liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli em fevereiro.

Para Dias Toffoli, não se pode confundir “legítima defesa da honra” com “legítima defesa”

Na ação, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) argumentou que há decisões de Tribunais de Justiça que ora validam, ora anulam vereditos do Tribunal do Júri em que se absolvem réus processados pela prática de feminicídio com fundamento na tese. O partido apontou, também, divergências de entendimento entre o Supremo e o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Argumento odioso, desumano e cruel

Ao reafirmar sua decisão liminar, o ministro Dias Toffoli deu interpretação conforme a Constituição a dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa. Acolhendo sugestão do ministro Gilmar Mendes, o voto de Toffoli determina que a defesa, a acusação, a autoridade policial e o juízo não podem utilizar, direta ou indiretamente, o argumento da legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais nem durante julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento. Na decisão liminar de fevereiro, o impedimento se restringia a advogados de réus.

Segundo Toffoli, além de ser um argumento “atécnico e extrajurídico”, a tese é um “estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida” e totalmente discriminatório contra a mulher. A seu ver, trata-se de um recurso argumentativo e retórico “odioso, desumano e cruel” utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil.

Ao ressaltar que o argumento não é, tecnicamente, legítima defesa (essa, sim, causa de excludente de ilicitude), o ministro registrou que, para evitar que a autoridade judiciária absolva o agente que agiu movido por ciúme, por exemplo, foi inserida no Código Penal a regra do artigo 28 de que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal. “Portanto, aquele que pratica feminicídio ou usa de violência, com a justificativa de reprimir um adultério, não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma, desproporcional, covarde e criminosa”, afirmou.