Os limites entre o Estado e as religiões em situação de calamidade pública

Jui Jerônymo Villas Boas,*Jeronymo Pedro Villas Boas

1)Primeiras impressões

Em meio às primeiras ações de combate à pandemia da Covid-19, editou o legislador federal a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispondo sobre as medidas que poderiam ser adotadas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional, responsável pelo surto de 2019/2020.

A referida Lei, no dia 20 de março, foi então alterada por Medida Provisória do Presidente da República, quando modificou unilateralmente o caput e § 9° do seu art. 3°, além de outros dispositivos.

Nesse mesmo dia, o Senado Federal aprovou, por Decreto Legislativo, a solicitação da Presidência da República de declaração de calamidade pública, com seus efeitos até 31 de dezembro de 2020.

O reconhecimento dessa situação, conforme texto do decreto, deu-se exclusivamente para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei Complementar nº 101/2000.

Tal marco regulamentar estabeleceu, segundo se noticiou aos quatro ventos, uma “guerra santa” contra o agente microscópico causador do problema de saúde pública que afetou os entes da Federação.

Em decisão liminar, referendada pelo plenário “virtual” do Supremo Tribunal Federal, em decorrência de divergências políticas estabelecidas entre Governadores, Prefeitos e o Presidente da República, que tentou concentrar o poder de eleger as diretrizes de tais políticas públicas, a Corte decidiu, na ADI 6341, o seguinte:

Decisão: O Tribunal, por maioria, referendou a medida cautelar deferida pelo Ministro Marco Aurélio (Relator), acrescida de interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais, vencidos, neste ponto, o Ministro Relator e o Ministro Dias Toffoli (Presidente), e, em parte, quanto à interpretação conforme à letra b do inciso VI do art. 3º, os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Redigirá o acórdão o Ministro Edson Fachin […]. (Sessão realizada inteiramente por videoconferência – Resolução 672/2020/STF).

Constava da decisão monocrática, no seu dispositivo, o comando do relator: “3. Defiro, em parte, a medida acauteladora, para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente.”

A decisão, que, segundo o relator, teria “efeito pedagógico”, predica a existência de competências concorrentes entre os entes federados e institui que “[…] as providências não afastam atos a serem praticados por Estado, o Distrito Federal e Município considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior”, fato que encorajou Governadores e Prefeitos a editarem atos antagônicos, com a ocorrência de sobreposição de decretos, abrangendo o direito material de liberdade de culto.

Nesse caso específico do direito de liberdade religiosa objetiva, suas excelências estabeleceram verdadeira conjuração de normativos, que, em sua maioria, “esqueceram” da cláusula de separação com as organizações religiosas, produto de uma política que vai dando à luz um neopadroado em relação às igrejas cristãs, centros espíritas, sinagogas e demais organizações religiosas.

Notadamente, quanto à Igreja Católica, tais decretos se afastaram das diretrizes do Decreto nº 7.107, de 11 de fevereiro de 2010, remissivo à aprovação, pelo governo brasileiro, da concordata com a Santa Sé, onde se reconheceu as medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares de culto e de suas liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo, direitos que de forma geral se estendem a outras confissões cristãs, devido ao princípio da isonomia.

Embora não se desconheça a gravidade da situação de calamidade pública, deve-se ter em vista que essa não se confunde com Estado de exceção política em matéria de liberdade religiosa.

Portanto, necessárias algumas reflexões sobre esse conjunto de situações.

2) Breve nota sobre a separação do Estado das organizações religiosas

Os constituintes que elaboraram a primeira Constituição Republicana (1890-1891) divergiram muito sobre a extensão da liberdade religiosa que estavam a estabelecer. Ato normativo anterior (Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890) havia separado o Estado da Igreja antes oficial, muito embora essa sombra do Império ainda pairasse sobre temas religiosos, levando nossos legisladores ancestrais a reconhecerem a pluralidade de crenças e a necessidade de razoável distanciamento do Estado das entidades religiosas com a aprovação da “emenda Zema”. Ainda, a assembleia constituinte aboliria as leis de mão-morta e delegaria para a Lei Complementar a regulamentação das questões relacionadas ao patrimônio das confissões.

No julgamento do Agravo 490, de 9 de maio de 1903, o Supremo Tribunal Federal consideraria, em seguida, que as corporações religiosas não estariam totalmente emancipadas da ação do Estado, ao contrário, dependeriam de licença do governo para disporem de seus bens, julgamento esse, depois comentado pelo Ministro João Barbalho, onde se teria admitido que a autonomia das confissões poderia sofrer restrições.

Inicia-se, nessa quadra, uma série de incompreensões e conflitos, em parte ditados pela hegemonia católica da primeira república e, em outra, devido ao crescimento de outras confissões religiosas ao longo da história recente do Brasil. Basta observar que a representação evangélica na assembleia de 1987/1988 cresceu vertiginosamente em relação a essa representação em 1890/1891, quando haviam apenas seis parlamentares ligados a tais confissões.

A construção da cláusula de separação do Estado das confissões religiosas, no texto constitucional atual, inscrita no art. 19 da Constituição da República, aporta no texto político carregada dessas incompreensões.

Mas, por ora vejamos o que dispõe esse art. 19 da Constituição, dispositivo inserido no Título que trata da Organização Política-Administrativa da República Federativa do Brasil:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I- estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

II- recusar fé aos documentos públicos;

III- criar distinções entre brasileiros ou preferências entre

A norma expressa da Constituição permite – rememorando aqui o Decreto nº 119- A/1890, entender que o distanciamento do Estado das religiões decorre do reconhecimento da pluralidade de confissões existentes no ambiente social, do tratamento isonômico entre elas e da não interferência, como se encontra disposto nos três primeiros artigos da norma primordial de separação:

Art. 1º É proíbido à autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões filosóficas ou religiosas.

Art. 2º A todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos atos particulares ou públicos, que interessem o exercício deste decreto.

Art. 3º A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos nos atos individuais, sinão também as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem colectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder publico.

Nessa linha, podemos compreender o motivo de alguns constitucionalistas identificarem o Estado laico com o Estado pluralista, interditado de julgar em matéria religiosa, o que leva a dois modelos de separação: a) a separação cooperativa, e b) a separação com neutralidade, sendo que a primeira torna possível uma inter-relação entre Estado e confissão (com objetivos comuns), quando presente a conjugação de fins.

Inclinar, portanto, para um modelo ou outro, repercute em possíveis ações governamentais que de fato, ao teor do inc. I do art. 19, podem resultar de atividades colaborativas de interesse público, sem que isso queira dizer, com efeito, que os modelos de relação do Estado com as confissões religiosas se confundam.

Pois bem, a separação – ou os modelos de separação –, decantada pelo constituinte de 1988, com o panorama da multiplicidade de confissões religiosas cristãs que já permeavam as relações institucionais naquele final de década, apontava para a adoção de uma separação cooperativa, o que levava à constatação de que o sistema republicano repousaria sobre a fórmula da aconfessionalidade em matéria religiosa; porém, seria o Estado (órgão público) assumido pela comunidade de intérpretes como laico, no sentido de ser presumivelmente neutro nas relações com as confissões religiosas.

A construção de um Estado neutro, diferentemente do que se pensa, não o pressupõe totalmente afastado das confissões religiosas, mas se fundamenta na neutralidade e no respeito à independência recíproca.

Tal leitura permite compreender a possibilidade de existir, entre o Estado (considerando aqui todos os entes da Federação) e as diversas confissões religiosas, uma relação de cooperação branda ou neutra, que impede a apropriação por parte do ente público dos conteúdos do culto. Por outro lado, esse modelo impede que as religiões se apropriem do poder político do Estado, submetendo os governantes aos seus interesses religiosos.

3) A possibilidade de limitação do exercício do direito de culto

O olhar que repousa sobre a limitação da liberdade religiosa deve pairar sobre inc. VI do art. 5º da Constituição, que estabeleceu claramente o livre exercício dos cultos religiosos e garantiu, na forma da lei, a proteção dos locais a eles destinados e suas liturgias; eis a literalidade do dispositivo: “VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; […]”.

Pois bem, a expressão “na forma da lei”, inserida no inciso sexto, parece predicar a necessidade de que o livre exercício do culto deve de fato ser regulamentado, abrindo a possibilidade de que esse direito viesse a sofrer restrições por parte do legislador federal.

Essa referência a limites de direitos fundamentais traz à lume a existência de uma diversidade de direitos que não são propriamente princípios, como enunciado no caput do art. 5º da Constituição, e a possibilidade de que esses direitos entrem em colisão e ensejem recíprocas limitações, não existindo no sistema constitucional, no jargão jurídico, os chamados direitos absolutos.

Embora não admita, pura e simplesmente, a criação teórica de que o aplicador/intérprete da norma, para resolver conflitos entre “princípios jurídicos” postos em colisão, deva se utiliza da ponderação como método propedêutico, tal situação denota a possibilidade de o legislador democrático prevenir tais colisões através da edição de atos normativos conformadores, fator delimitado pela competência legislativa.

Tais atos regulamentares se apresentam de plano, como instrumentos de restrições ao exercício de direitos garantidos de forma ampla (declarados) na sede constitucional. Nessa seara, a intervenção restritiva vem associada ao próprio direito, o que sugere, nesse contexto, uma bifurcação de teorias (interna e externa) sobre possíveis restrições aos direitos fundamentais.

Como, em tese, eventual restrição à liberdade religiosa de culto dependeria de lei regulamentar, poder-se-ia, à primeira vista, imaginar que tal liberdade poderia sofrer limitações imanentes, garantido um conteúdo essencial. Ausente um Estatuto das Religiões ou Leis que regulamentem o exercício da liberdade de culto, de plano surge a indagação se os agentes públicos poderiam dispor, através de atos administrativos ou regulamentares, sobre tais restrições, ou mesmo se elas poderiam ser objeto de decisões judiciais.

A elaboração doutrinária dos “limites imanentes”, considerada a partir da constatação de que os axiomas de declaração de direitos não absorvem de plano todas as situações fáticas possíveis, em tese permite que do próprio direito declarado possam as autoridades públicas extraírem as restrições ao seu exercício, sem que tais restrições estejam escritas de forma clara em algum documento legislativo.

Afastando-me do “foro de princípios”, ou seja, da possibilidade de que em matéria de liberdade religiosa algum aplicador/intérprete possa, com fundamento em subjetividades, restringir essa liberdade fundamental com a otimização do princípio colidente de maior importância momentânea, acolho, com reservas, a possibilidade de que atos regulamentares ou legislativos possam de alguma forma dispor sobre normas públicas de realização do culto sem adentrar na esfera de liberdade (conteúdo essencial) de estabelecer suas liturgias, dias, horários e local de realização, como, no exemplo bastante discutido, a possibilidade de o Município, no exercício de sua competência, editar normas de postura municipal para limitar os decibéis de aparelhos sonoros usados no culto, com o objetivo de não perturbar àqueles que não participam da sua realização.

Contudo, o fato que aqui interessa, para efeito dessa breve análise, é se o Estado Federado (leia-se Estado Membro) poderia editar norma proibindo a realização de cultos em razão do risco de transmissão de doenças (por motivo de saúde pública) em meio a uma endemia ou pandemia, ou, então, dispor sobre sua realização em determinados dias ou por certos meios eletrônicos, ressaltando o fato de que nessa possibilidade se revele o dever do Estado de cuidar da saúde dos cidadãos.

Mesmo considerando a hipótese remota de que de fato o ente federado possa, na sua atividade concorrente, determinar o isolamento social ou mesmo a restrição do direito de reunião e da liberdade de ir e vir, a regulamentação do culto (seja de qual confissão for) apresenta diversos complicadores.

Ademais, não se pode perder de vista que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, recepcionada pelo nosso sistema constitucional, declara, no seu artigo XVIII, que “todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular”.

Nessa linha de compreensão, quando se afasta a possibilidade de que os entes federados e mesmo os tribunais adentrem ao âmago da liberdade religiosa objetiva para disporem sobre seus conteúdos essenciais, resta a discussão sobre os aspectos de intersecção desse direito fundamental com outros direitos, visíveis apenas na superfície da liberdade de culto, como no caso da limitação decorrente de normas ambientais que acabam limitando o uso de aparelhos sonoros em igrejas. 

4) O poder regulamentar do Estado e a liberdade de culto 

Acolho, como ponto de partida para a discussão sobre alguns aspectos do tema aqui abordado, dois fatos como incontroversos: o primeiro alusivo ao deferimento de liminar satisfativa, referendada pelo plenário do STF, que colocou fim à discussão sobre a possibilidade de os Prefeitos e os Governadores baixarem atos regulamentares necessários à preservação da saúde da população, com fundamento na Lei nº 13.979/2020; o segundo, com o reconhecimento de que tais atos regulamentares possuem “efeito concreto”, portanto, mostram-se carregados de poder decisório delegado, não se admitindo, nesse quadrante, a figura do decreto autônomo.

Feitas tais observação, arranco da hipótese de que determinado governante, através de

decretos, pretenda regulamentar a realização do culto das confissões religiosas, no primeiro deles proibindo por completo as reuniões presenciais e no último estabelecendo regras para sua realização, inclusive, em alguns casos, estipulando o dia da semana, a quantidade de cultos e quais os Municípios em que as confissões devam observar tais normas, excluindo outros.

A questão aparentemente simples, desenhada a partir da interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal sobre a competência compartilhada e com enfoque na emergência de saúde pública, traz algumas perplexidades quanto à liberdade de culto; atento-me, no entanto, a apenas três das questões concretas que atos administrativos estaduais dessa natureza demandam e faço as seguintes indagações: a) existe uma competência residual do Estado membro para legislar sobre liberdade religiosa?; b) é plausível a possibilidade de o membro do poder executivo estadual determinar, por decreto, os dias e os locais de realização do culto?; c) pode o ente federado estadual declarar as confissões religiosas como serviço essencial, com a finalidade de regulamentar aspectos do culto?

Vejamos:

a) Existe uma competência residual do Estado membro para legislar sobre liberdade religiosa?

A promulgação da Constituição de 1988 dotou a federação brasileira de uma Carta Política democrática (no contexto histórico em que fora escrita), sendo ela a fonte primordial de distribuição de competências legislativas entre os entes federados, compreendida a Federação, ao teor do art. 1º, como a união indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal.

Assim sendo, a única fonte legítima de compartilhamento de competências entre os entes da Federação é justamente a Constituição Federal, não havendo, nessa seara, espaço para autoridades, mesmo judiciais, atribuírem competências implícitas ou não escritas aos entes federativos, para que esses limitem de forma autônoma o exercício de direitos fundamentais.

Aliás, a decisão do Supremo Tribunal Federal, nesse aspecto, é bastante clara ao se referir ao art. 23 da Constituição, onde se estabelece a competência comum entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Precisamente no inciso II do referido dispositivo constitucional, o constituinte ao estabeleceram a competência comum dos entes federativos para cuidarem da saúde e assistência pública, nos seguintes termos:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

[…]

II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

Em outro passo, devo esclarecer que o constituinte originário instituiu, no art. 11, aparentemente “esquecido” na decisão do Supremo, que cada Assembleia Legislativa, com poderes constituintes, deveria elaborar a Constituição do Estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios desta. Promulgada a Constituição do Estado, caberia às Câmaras Municipais, no prazo de seis meses, votar a Lei Orgânica respectiva, em dois turnos de discussão e votação, respeitado o disposto na Constituição Federal e na Constituição Estadual.

Ora, não havia, até bem pouco tempo, qualquer discussão acerca do princípio da simetria (baseado na pirâmide legislativa kelsiana), que estabelecia um sentido lógico e complementar entre as diversas competências legiferantes dos entes federativos. O próprio Supremo Tribunal Federal resguarda esse entendimento no caso de conflito de normas editadas pelos Estados membros e as normas Federais, em decisões não contaminadas pelo Covid-19.

Em decisão recente, inclusive, o Supremo Tribunal Federal, analisando o princípio da simetria e da separação dos poderes, ao julgar a ADI 5290, pontificou ser inconstitucional o Poder Legislativo local editar normas para sustar atos normativos do Poder Executivo em desacordo com a lei, exorbitando do seu poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa, considerando esse tipo de regulamentação ser capaz de alterar o sistema federativo, como estabelecido pela Constituição da República.

Confira:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL. INC. IV DO ART. 11 DA CONSTITUIÇÃO DE GOIÁS, ALTERADO PELA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 46/2010. ATRIBUIÇÃO À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DE GOIÁS PARA SUSTAR ATOS NORMATIVOS DO PODER EXECUTIVO OU DOS TRIBUNAIS DE CONTAS. AFRONTA AO INC. V DO ART. 49, AO ART. 71 E AO ART. 75 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INOBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA SIMETRIA E DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. PRECEDENTES. AÇÃO DIRETA   DE   INCONSTITUCIONALIDADE   JULGADA   PROCEDENTE.   1. Sustação de atos normativos do Poder Executivo em desacordo com a lei, que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa: norma que altera o sistema federativo estabelecido pela Constituição da República. É inconstitucional a ampliação da competência da Assembleia Legislativa para sustar atos do Poder Executivo em desacordo com a lei (inc. V do art. 49 da Constituição). 2 . Sustação de atos do Tribunal de Contas estadual em desacordo com lei: inobservância das garantias de independência, autonomia funcional, administrativa e financeira. Impossibilidade de ingerência da Assembleia Legislativa na atuação do Tribunal de Contas estadual. 3. Ação Direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do inc. IV do art. 11 da Constituição de Goiás, com a alteração da Emenda Constitucional n. 46, de 9.9.2010. (ADI 5290, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 20/11/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe- 270 DIVULG 06-12-2019 PUBLIC 09-12-2019 – grifei).

Pois bem, o ponto primordial de toda essa construção da competência comum dos entes federativos – no caso dos Estados, Distrito Federal e Municípios, é a compreensão jurídico- constitucional da expressão “cuidar da saúde e assistência pública”, que, na decisão liminar do STF, se reverte politicamente no direito de os entes da Federação produzirem atos dentro de sua esfera de competência.

Por outro viés, pode se perguntar se essa competência comum de cuidar da saúde permite que os Prefeitos e Governadores, na sua atividade residual, disponham sobre o culto das confissões religiosas.

Vou direto ao ponto. Se a terminologia constitucional “cuidar da saúde” não se reduz a mera possibilidade de promover cuidados (manter em funcionamento hospitais, laboratórios, clínicas etc.), mas inclui a possibilidade de se estabelecer regras de comportamento social que incluam limitações ao funcionamento de instituições religiosas, nos colocamos dentro de uma exceção que permite o uso da “discricionariedade” do governante. Admitindo essa última hipótese, estaríamos diante de substancial modificação do sistema federativo e de rompimento da cláusula constitucional de separação do Estado com as confissões religiosas.

Porém, não há, na Constituição da República, qualquer dispositivo que permita essa

exegese, nem mesmo em “estado de calamidade pública”. Ao contrário, o dispositivo acima citado, que estabelece a separação do Estado das confissões religiosas, quando permite a colaboração de interesse público como princípio relacional (entre as confissões e o Estado e não entre o Estado e as confissões), impossibilita que medidas dessa espécie sejam ordenadas sem o consentimento colaborativo das instituições religiosas.

Ordem de fechamento de locais de culto pelo governante, seja ele qual for, não se compatibiliza com a Constituição da República, não se encontrando essa hipótese no âmbito de alcance da competência comum dos entes federativos. Tal objetivo, para não ferir a cláusula de separação, suscitaria a elaboração de termo de cooperação a ser assinado pelos representantes das confissões religiosas e pelo chefe de poder estadual.

Tal situação, no entanto, faz surgir outra questão, a recusa da confissão religiosa de suspender a realização presencial do culto, o que deixo aqui em aberto, considerando ainda vivermos em um Estado Democrático de Direito.

Nesse ponto, concluo que não há, no ordenamento jurídico protetor da liberdade de culto, qualquer espaço para governadores e prefeitos disporem sobre a realização de cultos ou reuniões confessionais, sem o consentimento prévio em sistema de colaboração dessas confissões. Eventuais normas que regulem o comportamento social, como o uso de máscaras nos locais públicos ou privados e o distanciamento de pessoas, não podem, nesses atos, serem direcionadas especificamente às confissões religiosas, muito menos podem os chefes do executivo estadual ou municipal estabelecer regras sobre a liturgia culto.

b) É plausível a possibilidade do Poder Executivo Estadual determinar por decreto os dias e locais de realização do culto?

Vedada a possibilidade de que o governante determine a suspensão de realização de cultos sem a concordância das entidades religiosas em cooperação de interesse público, essa questão da impossibilidade do setor público regulamentar por decreto os dias, locais, quantidades de celebrações etc., resta totalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional, mesmo em estado de calamidade.

Aflora, todavia, uma questão de fundo a ser esclarecida, que se encontra posta no cerne fundamental da Constituição da República. O legislador constitucional, ao estabelecer os chamados direitos fundamentais (negativos), garantindo a liberdade religiosa, no inc. VI do art. 5º, estabeleceu o livre exercício dos cultos religiosos e garantiu, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

A referida disposição, sem qualquer margem de dúvida, predica a elaboração de Lei Complementar (Estatuto das Religiões), seguindo o modelo português para dispor sobre a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Não tendo sido editada essa Lei Complementar, indagar-se-ia: poderia de forma residual ou suplementar algum governante dispor sobre os locais de culto e suas liturgias?

A resposta a uma indagação dessa natureza seria: não e sim…

Embora a norma complementar exija quórum reforçado, como previsto na Constituição, em tese o Presidente da República poderia se utilizar do instrumento denominado de Medida Provisória para disciplinar essa questão em caso extremo (como o da pandemia), porém, tal possibilidade vem sendo reiteradamente rejeitada pelo próprio Supremo Tribunal Federal.

Transcrevo abaixo, exemplificativamente, a última decisão desse gênero da Corte Constitucional:

Ementa: CONSTITUCIONAL. MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MPV 904, DE 2019. EXTINÇÃO DO SEGURO OBRIGATÓRIO DE DANOS PESSOAIS CAUSADOS POR VEÍCULOS AUTOMOTORES DE VIAS TERRESTRES – DPVAT E DO SEGURO OBRIGATÓRIO DE DANOS PESSOAIS CAUSADOS POR EMBARCAÇÕES OU POR SUAS CARGAS – DPEM. MATÉRIA RESERVADA A LEI COMLEMENTAR.                         VEDAÇÃO                                                            CONSTITUCIONAL. INCONSTITUCIONALIDADE      FORMAL.      EXCEPCIONAL     URGÊNCIA.

DEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR. 1. É vedada a edição de medida provisória que disponha sobre matéria sob reserva de lei complementar. 2. A regulação do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres e do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Embarcações ou por sua Carga exige, nos termos do art. 192 da Constituição Federal, lei complementar. 3. Medida cautelar deferida, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei 9.868, para suspender os efeitos da Medida Provisória 904, de 11 de novembro de 2019. (ADI 6262 MC, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em   20/12/2019,   PROCESSO   ELETRÔNICO   DJe-095   DIVULG   20-04-2020 PUBLIC 22-04-2020 – grifos nossos).

Não sendo possível nem mesmo àquele a quem a Constituição Federal reservou o poder de ditar Medidas Provisórias com força de lei para dispor sobre matéria afeta à Lei Complementar, o que falar do poder normativo de Governadores e Prefeitos?

A edição de decretos autônomos, que pretendam regulamentar diretamente o núcleo fundamental da liberdade de culto (liberdade religiosa objetiva), encontra clara impossibilidade constitucional, sendo passível, nesses aspectos, que os entes públicos legitimados questionem tais atos diretamente ao Supremo Tribunal Federal, diante da manifesta inconstitucionalidade formal.

Um último aspecto deve ser abordado, quanto à possibilidade de que o Estado adentre ao âmago da liberdade de culto, seja para impedir os fiéis de frequentarem o templo, seja para que esses não se reúnam em culto, e para alterar sua liturgia.

O governante que assim age aparentemente viola frontalmente a cláusula de separação do Estado das confissões religiosas, ultrapassando os limites de atuação ou repressão previstos na norma constitucional e, ao fazê-lo, também viola os princípios expressos no art. 37 da mesma Constituição.

A resposta à questão aqui discutida é imperativa sob o aspecto de que os Governadores e Prefeitos não podem editar normas para impedir a realização de cultos religiosos ou determinar quais os dias, meios e locais possam se realizar. Ao fazê-lo, desvinculam-se do princípio da legalidade.

c) Pode o ente federado (estadual e municipal) declarar as confissões religiosas como serviço essencial, com a finalidade de regulamentar aspectos do culto?

Essa última questão atrai aspectos da liberdade religiosa subjetiva e objetiva e, em certa medida, da organização civil das entidades religiosas ou de sua ausência, quando a entidade não possui registro de seus estatutos e funciona de forma primitiva, como universidade de fato.

Declarar uma entidade religiosa ou todas elas como serviço essencial adentra primeiramente na seara da substancialização do credo pessoal, volvendo para o espaço de reconhecimento público da importância da religião (e suas verdades) para o indivíduo, quando nessa quadra deveria o Estado se manter neutro, considerando a existência de cidadãos não religiosos (agnósticos) ou ateus, compartilhando o mesmo tecido social.

O problema, porém, agrava-se quando uma das confissões – ou algumas delas – goze de maior proximidade com o governante, o que credencia o líder religioso a obter certas vantagens desse reconhecimento, reforçando seu proselitismo religioso no espaço público.

No segundo aspecto, a lei civil, precisamente o Código Cível, classifica, no inc. IV do art. 44, as entidades religiosas como organizações de direito privado, sem aqui adentrar a fundo sobre a natureza jurídica da Igreja Católica, que possui diferenciação determinada pela sua vinculação universal ao Estado do Vaticano, considerando o que fora declarado na concordata de 2008, no art. 7º, sobre o reconhecimento da sua personalidade jurídica em conformidade com o direito canônico.

A inclusão das entidades religiosas (daquelas que possuam personalidade jurídica formal) no Direito Privado lhe confere um campo de autonomia, próprio de entidade dessa espécie, devido à finalidade intrínseca vinculada a sua natureza religiosa. Nesse preciso aspecto, as organizações religiosas possuem, por força da garantia fundamental de liberdade de crença, um núcleo de autonomia (foro interno), em que as autoridades públicas não podem intervir, mesmo que para avaliar sua essencialidade.

Considero, nesse ponto, que ser essencial tem características totalmente diferentes de ser útil. É comum os Estados membros reconhecerem, por ato legislativo próprio (lei no sentido formal), as organizações religiosas e outras associações como de utilidade pública. Assim, ser essencial é o mesmo que, sob o ponto de vista do Estado, ser indispensável, fundamental e primordial – para citar apenas alguns sinônimos, o que denota a possibilidade jurídica de tal reconhecimento retirar o ente público da sua necessária posição de inércia (neutralidade) na relação com as religiões.

O reconhecimento dessa “essencialidade”, por mais louvável que possa parecer, por parte do Estado, encontra novamente óbice no princípio da neutralidade, que muitos traduzem como laicidade, pelo simples motivo de que uma declaração desse tipo necessita de prévio juízo sobre o valor intrínseco da religião.

Como vivemos numa sociedade plural sob o ponto de vista das crenças, torna-se, no mínimo, complexa essa declaração de essencialidade da atividade religiosa de todas elas de forma homogênea, com o único propósito de incluí-las no âmbito normativo da Lei nº 13.979/2020, que, segundo decisão do STF, permitiu a Governadores e Prefeitos baixarem atos administrativos dispondo sobre quais atividades são essenciais, com o fito de resguardar o funcionamento dos locais de culto.

Pois bem, as amarras legais existentes nessa seara, com o distanciamento obrigatório do Estado das questões religiosas, principalmente que prediquem aspectos litúrgicos do culto, sua realização e o estabelecimento de dias e quantidades de vezes de sua prática, criam um nó górdio impossível de ser desatado. Somente a ruptura do sistema de neutralidade e separação do Estado com as confissões poderia, como ocorreu, permitir esse tipo de declaração.

5) Conclusão

 As situações extremas (chamadas de excepcionais) estão para o político como o milagre está para a religião, aqui parafraseando a famosa alocução de Carl Schmitt, pois permitem ao governante o uso discricionário do poder ou de criação de um poder absoluto, mesmo que momentâneo.

Não me escapa, na leitura do conjunto de acontecimentos, que vivemos a eleição de um “inimigo” comum, que todos devemos combater e que gera a transcendência do político. Isso, em tese, permitiria a adoção de medidas extremas a partir da oposição “protetor-inimigo”, capaz de transformar qualquer um que critique tais medidas de proteção da saúde pública, sob o signo do cuidar da saúde e combater o vírus, em um inimigo.

Contudo, do círculo do poder “causa-ato-resultado”, ou seja, “pandemia – medidas administrativas – diminuição do contágio”, não se subtrai o dever dos governantes de respeito ao Ordenamento Jurídico, por mais que seja este um dado da realidade tão asfixiante para quem exerce o poder como o vírus é para o indivíduo que se encontra em grupo de risco, principalmente no que se trata de levar a liberdade de culto a sério.

*Jeronymo Pedro Villas Boas é juiz de Direito Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa

Referências 

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