A agonia dos partidos e o fantasma da realpolitik: federações, blocos e a erosão do sentido

Kowalsky do Carmo Costa Ribeiro*

Não estamos diante da consolidação da política — mas de sua mutação para uma forma vazia de si. A criação das federações partidárias, em tese uma solução técnica para reduzir o excesso de legendas e dar estabilidade ao sistema, tem revelado um fenômeno mais profundo e menos comentado: a erosão da identidade ideológica, substituída por uma lógica de sobrevivência parlamentar que se curva exclusivamente à realpolitik.

A federação entre partidos como PSDB e Podemos — grupos historicamente diversos, quando não divergentes — não é um gesto de convergência doutrinária, mas um grito silencioso de desespero institucional: a necessidade de alcançar a cláusula de barreira, obter tempo de TV e manter acesso aos fundos eleitorais. Nessa arena, ideias não valem votos — blocos valem.

A federação como travessia do desespero

Instituída pela Emenda Constitucional nº 97/2017 e regulamentada pela Lei nº 14.208/2021, a federação foi concebida como antídoto aos micropartidos fisiológicos. Mas o remédio tem efeitos colaterais: partidos com trajetórias distintas agora são fundidos sob o rótulo da funcionalidade.

A consequência prática é devastadora: não se discutem mais programas de governo — discutem-se algoritmos de distribuição proporcional. A ideologia cede lugar à sobrevivência estatística. Nas palavras de Weber, abandona-se a ética da convicção para abraçar, integralmente, a ética da responsabilidade. O problema? Ninguém se responsabiliza por convicção alguma.

Como alertou Franco Montoro:
“Democracia não é apenas o direito de votar, mas de participar da vida política.”
“O federalismo brasileiro é uma ficção: concentramos poder em Brasília e abandonamos os municípios.”
“A centralização mata a democracia pela raiz: o cidadão.”

E João Mellão Neto completaria:
“O Estado brasileiro está doente. E os partidos estão em coma.”
“Reformar o sistema político sem coragem é como tentar domar um touro com uma flor na mão.”
“A omissão é a mais letal das traições políticas.”

Realpolitik: o que é e por que triunfa

O termo nasceu no século XIX alemão para designar uma política baseada em fatos e interesses concretos, não em ideologias ou utopias. Mas sua aplicação atual no Brasil está longe dos estadistas de guerra. Vivemos, antes, uma deformação tropical da prática: tudo se justifica desde que garanta um pedaço do poder.

A sobrevivência partidária virou uma operação contábil. O que se vê são federações sem alma, blocos sem face e governos dialogando não com partidos, mas com condomínios legislativos formados por interesses agregados — onde a única coerência é o acesso ao centro do orçamento.

A cláusula de barreira como indutora da homogeneização cínica

Com o endurecimento da cláusula de barreira (mínimo de 1,5% dos votos válidos em pelo menos nove estados), partidos menores vivem a angústia da irrelevância. O governo, por sua vez, prefere lidar com blocos consolidados — simplifica a negociação, garante a maioria e evita os ruídos da dissidência ideológica. O resultado? Pequenos partidos são forçados a “federar” ou desaparecer.

Cria-se, assim, um paradoxo: quanto mais o sistema empurra pela racionalidade numérica, mais o conteúdo da política se esvazia. O Congresso vira uma tabuada de forças — ruralista, evangélica, da bala e da bola — mas sem projeto de país.

O perigo de ignorar os pequenos: erosão do pluralismo

Ao excluir partidos menores do diálogo político, o governo sufoca o oxigênio da diversidade representativa. Movimentos sociais, causas específicas, pautas emergentes — todas acabam soterradas por megablocos de líderes que representam apenas a si mesmos.

Na prática, a política vai se transformando em um oligopólio legislativo, onde o acesso ao poder é restrito e a renovação, desestimulada. O sistema se fecha. E quando a política se fecha, a rua abre.

A solução não está no começo — está no fim

Há duas saídas possíveis. Ambas têm riscos. Ambas têm promessas:

1. O parlamentarismo. Modelo adotado em democracias consolidadas como Alemanha, Reino Unido, Canadá. Nele, a instabilidade partidária é resolvida pela lógica da coalizão legítima — e não por fusões forçadas. O líder do governo nasce do parlamento e depende dele para existir. A responsabilidade política é direta, o debate é constante e a fragmentação é administrada com maturidade.

2. O bipartidarismo à americana. Sistema que favorece a formação de dois grandes partidos hegemônicos, com plataformas amplas e correntes internas divergentes. Seria uma forma de depurar o sistema brasileiro, forçando agrupamentos ideológicos reais — em vez de coligações por conveniência e fusões por desespero.

A escolha é política — ou será judicial

Se não enfrentarmos essa discussão com seriedade, ela será imposta por outras vias: pelo Supremo Tribunal Federal, por reforma eleitoral forçada ou por uma crise terminal de representação.

O Brasil não pode mais tolerar partidos que existem apenas para disputar fundo eleitoral ou vender tempo de TV.

Ou refundamos os partidos como casas de ideias, ou aceitaremos que eles se tornem barracões de ocasião, vendidos por metro quadrado.

O tempo da ilusão acabou. Agora, é reforma — ou ruína.

Fontes legais citadas:
• Emenda Constitucional nº 97/2017
• Lei nº 14.208/2021

*Kowalsky do Carmo Costa Ribeiro é advogado, especialista em Direito Legislativo e ex-procurador Geral da Câmara Municipal de Goiânia.