O sistema penal brasileiro, frequentemente marcado por interpretações que expandem o alcance da norma penal, se depara com uma pergunta tão simples quanto decisiva: pedir droga na cadeia configura crime? A resposta parece óbvia para quem compreende os limites da tipicidade penal. Contudo, por anos, o Judiciário hesitou diante dessa questão, ora punindo intenções, ora resgatando os fundamentos do Estado de Direito.
A controvérsia ressurgiu com força no julgamento dos Embargos Infringentes nº 0138794-29.2018.8.09.0168, apreciados pelo Tribunal de Justiça de Goiás. O caso envolvia um detento que, por meio de recado à companheira, solicitou o envio de entorpecentes ao presídio. A droga foi interceptada antes da entrega. Mesmo assim, o acusado foi condenado por tráfico de drogas. A defesa recorreu, sustentando a atipicidade da conduta: não houve posse, transporte, entrega nem qualquer outro verbo típico do artigo 33 da Lei de Drogas.
O caso concreto e a controvérsia jurídica
A base da acusação era a simples solicitação da droga, sem qualquer comprovação de que o réu tivesse tido acesso ao entorpecente. Nenhum ato de execução do crime se concretizou. Ainda assim, a primeira decisão optou pela condenação com base em um raciocínio perigoso: o de que o pedido já representaria aquisição do bem ilícito, antecipando artificialmente o iter criminis. Trata-se de um equívoco técnico e uma afronta direta ao princípio da legalidade penal.
A doutrina penal é clara: atos meramente preparatórios não são puníveis, salvo quando descritos expressamente na norma penal – o que não é o caso. O tipo penal do tráfico exige que o agente pratique uma das condutas descritas no art. 33 da Lei nº 11.343/06. Solicitar não é verbo típico. Pedir é intenção, não é ato. Criminalizar isso é transformar o Direito Penal em ferramenta de punição de pensamentos.
Solicitação é ato de execução?
A resposta é não. O Direito Penal contemporâneo, assentado no modelo garantista, exige que a conduta atinja a esfera de realização do tipo penal. A simples intenção, ou mesmo o planejamento, permanece no campo da atipicidade – é fato irrelevante para fins penais. Se o pedido não foi atendido, se a droga não chegou ao preso, não há início de execução, tampouco consumação.
Foi exatamente esse o entendimento adotado pela maioria da Câmara Criminal do TJGO, ao julgar os Embargos Infringentes. O voto vencedor reconheceu a ausência de início de execução e, portanto, a inexistência de crime, reformando a condenação.
A posição do STJ: o Direito Penal não pune vontades
A decisão do TJGO não está isolada. O Superior Tribunal de Justiça já consolidou jurisprudência no mesmo sentido. Em julgados recentes, tem afirmado que a ausência de entrega, posse ou contato com a substância impede a caracterização do crime de tráfico. A simples comunicação entre presos e pessoas externas, sem mais elementos, não satisfaz o standard probatório mínimo exigido para a condenação.
O STJ vai além: tem destacado a necessidade de respeito à legalidade estrita, à presunção de inocência e à proibição de analogia in malam partem. São princípios que funcionam como barreiras contra o arbítrio penal, especialmente no contexto prisional, onde vulnerabilidades são intensificadas.
Conclusão: garantir a legalidade é proteger a liberdade
Punir alguém por pedir droga é punir uma ideia, uma expectativa, um desejo. É romper com os limites do Direito Penal liberal, que só admite a intervenção estatal quando há fato típico, ilícito e culpável – e, principalmente, quando há prova concreta e válida da materialidade e da autoria.
O caso analisado pelo TJGO é paradigmático: reafirma que o Direito Penal não pode ser movido por suposições nem por construções interpretativas forçadas, sob pena de enfraquecer a confiança no sistema de justiça criminal.
Mais do que uma questão técnica, trata-se de uma reafirmação de valores. Legalidade, racionalidade probatória e presunção de inocência não são meras fórmulas jurídicas: são os pilares que sustentam a liberdade em um Estado Democrático de Direito.
Precedentes
TJGO – Embargos Infringentes nº 0138794-29.2018.8.09.0168; STJ – AgRg no REsp 1999604/MG; STJ – AgRg no REsp 1922955/MG; STJ – AgRg no HC 654.266/SP; STJ – AgRg no REsp 1795980/MG; STJ – AgRg no REsp n. 1.937.949/MG; STJ – REsp 1763756/MG; TJGO, HC n. 5337208-58; TJGO, AC n. 0100676-33; TJGO, AC n. 0126581-54; TJGO, HC n. 5190794-13; TJGO, HC n. 5836481-76
*Paulo Castro é advogado criminalista, bacharel em Direito e especialista em Ciências Criminais e na Lei de Drogas. Membro da Comissão Especial de Direito Processual Penal, da Comissão Especial de Defesa do Tribunal do Júri, da Comissão Especial de Execução Penal e da Comissão de Segurança Pública e Política Criminal da OAB/GO.