Davi de Paula Silva Ribeiro*
Em regra, os sócios administradores de uma limitada ficam impedidos de votar na aprovação das próprias contas (art. 1.078, § 2º, do CC). A ideia é evitar conflito de interesse: quem presta contas não deve apreciar o seu próprio trabalho.
O art. 1.074, §2º, dispõe que “nenhum sócio, por si ou na condição de mandatário, pode votar em matéria que lhe diga respeito diretamente”. Além disso, o próprio art. 1.078, §2º, exclui expressamente os membros da administração da deliberação sobre as contas do exercício, como forma de prevenir conflitos de interesse (voto do administrador nas próprias contas). Em outras palavras, como regra geral os sócios que também exercem cargos de administração não devem votar na aprovação das suas próprias contas.
Mas e se o único sócio que resta para votar, seja em uma sociedade com minoritários não administradores ou em sociedades “50/50”, agir de forma abusiva, barrando indefinidamente e sem justificativa aprovação e, com isso, travando a empresa?
Este artigo analisa os fundamentos jurídicos de decisões que flexibilizaram a regra supracitada e permitiram que os sócios-administradores votassem na aprovação de contas – especialmente o conceito de condição potestativa pura e o abuso do voto minoritário – e propõe boas práticas de governança para evitar impasses.
Os casos analisados expuseram que a aplicação estrita da proibição legal pode gerar um impasse indevido. Se em uma sociedade limitada houver três sócios e dois deles forem administradores em litígio com o terceiro sócio, a exigência de excluir os votos dos dois administradores resultaria em que apenas o sócio minoritário decidisse o destino das contas. Essa situação equivale a uma condição potestativa pura – um sócio, por si só e apenas por exercer seu arbítrio, poderia rejeitar arbitrariamente as contas.
A jurisprudência paulista e o STJ[1] abriram espaço para uma solução prática, permitindo, em casos excepcionais, que os administradores votem suas contas para não sacrificar o funcionamento da sociedade. Abaixo, quatro fases desse entendimento.
Os tribunais têm reconhecido que a condição potestativa pura não encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, sendo contrária ao princípio da boa-fé e da eficácia das deliberações sociais.
No julgamento do Agravo de Instrumento 0270334-61.2012, o TJ-SP apontou que a interpretação literal do art. 1.078, §2º poderia conduzir a tal arbitrariedade, pois permitiria ao minoritário frustrar sozinho a aprovação de contas.
Nesse sentido, “a rejeição das contas de uma sociedade ficasse na dependência da vontade exclusiva de um único sócio, à semelhança de uma condição potestativa pura, como almeja o recorrente” (AgInt no REsp 1636561/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 05/12/2019, DJe 19/12/2019).
Por isso, entendeu-se que a norma deve ser interpretada de modo a evitar paralisar a sociedade: se a aplicação restritiva inviabiliza o funcionamento normal da empresa, não há razoabilidade em impedir o voto dos administradores.
Em síntese, para evitar uma condição potestativa pura, o tribunal autorizou que os sócios administradores – majoritários na composição societária – participassem da votação sobre as contas, desde que não exista conflito de interesses apurado.
Outro fundamento central nas decisões judiciais é a preocupação com o abuso do poder de voto minoritário. Ao vedar indiscriminadamente que administradores votem nas próprias contas, a norma legal pode acabar suprindo indevidamente um sócio minoritário isolado com poder de veto absoluto.
Conforme destacado pela jurisprudência, impedir o voto do sócio administrador que controla os negócios sociais resultaria na imposição da vontade do minoritário ao da maioria, favorecendo cenário de abuso.
Assim, concluiu-se ser legítima a aprovação das contas pela maioria dos sócios aptos a votar (incluindo os administradores não impedidos), sob pena de privilegiar indevidamente o único sócio discordante.
Dessa forma, sem negar a existência da norma, os tribunais têm aplicado interpretações teleológicas: se a vedação absoluta levar à paralisação da sociedade, deve-se considerar que os administradores podem votar nas contas. Assim, os votos dos administradores majoritários foram computados para aprovar as contas, não sendo anuladas as assembleias.
Diante desse cenário, o ideal é que os sócios utilizem ferramentas para prevenir que esses abusos aconteçam. Portanto, recomenda-se que os sócios, administradores ou não, adotem medidas de governança e transparência:
- Disponibilização ampla das informações: garantir o acesso antecipado (por exemplo, via nuvem ou drive digital) a todos os documentos contábeis e balanços, conforme o art. 1.078, §1º do CC, incentiva a confiança e reduz resistências infundadas.
- Múltiplos administradores ou conselho: estruturar a administração com mais de um sócio-gerente, sendo importante prever critérios claros de desempate.
- Cláusulas de resolução de conflitos: inserir cláusulas de mediação, arbitragem ou de “shotgun clause” (oferta de compra e venda recíproca de quotas) em caso de impasse entre sócios, oferecendo vias alternativas para solução sem paralisar a empresa.
- Ação judicial preventiva (homologação): se a aprovação das contas não ocorrer por culpa de sócios, considera-se a possibilidade de ajuizar ação de prestação de contas ou anulatória de ato societário para regularizar a situação, evitando maiores atrasos.
- Constar obrigatoriedade de fundamentação de voto e, prever que na ausência de fundamentação, será computado o voto como favorável a aprovação de contas e/ou outras matérias.
A adoção dessas práticas ajuda a prevenir o impasse e, caso ele ocorra, facilita sua solução sem comprometer gravemente a atividade empresarial.
Em suma, apesar da vedação legal genérica ao voto de sócio-administrador em suas próprias contas (art. 1.074, §2º e art. 1.078, §2º do CC), a regra pode ser relativizada quando sua aplicação literal gera estagnação da empresa.
[1] RECURSO ESPECIAL Nº 1731785 – SP (2017/0318955-9), AgInt no REsp 1636561/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA