O Recurso Especial (RESP) 2037491/SP trata de uma questão fundamental sobre o standard probatório necessário para a pronúncia no sistema penal brasileiro. O caso, analisado pelo Ministro Rogério Schietti Cruz, destaca a importância de uma valoração justa e racional das provas, especialmente à luz do conceito de injustiça epistêmica desenvolvido por Miranda Fricker. A defesa argumentou que a condenação do recorrente se baseou em depoimentos de policiais e uma confissão informal, sem a devida corroboração de outras provas.
No recurso, a defesa questionou a validade da decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que presumiu a veracidade dos depoimentos policiais e a confissão informal do recorrente. A defesa sustentava que a condenação estava fundada em uma interpretação tendenciosa e desprovida de fundamentos probatórios robustos, desconsiderando o standard probatório exigido para a pronúncia.
Exigência de elevado standard para pronúncia
O Ministro Rogério Schietti Cruz acolheu os argumentos da defesa, enfatizando que a condenação não poderia se sustentar unicamente em depoimentos policiais não corroborados por outras provas. O Ministro destacou que o standard probatório para a pronúncia deve ser razoavelmente elevado, exigindo a presença de indícios suficientes de autoria ou participação para justificar a submissão do réu a julgamento pelo Tribunal do Júri.
Em seu voto, o Ministro Schietti afirmou que a fase de pronúncia no procedimento bifásico do Tribunal do Júri deve funcionar como um filtro rigoroso, permitindo apenas acusações fundamentadas e viáveis. Ele rejeitou a aplicação do princípio “in dubio pro societate”, que sugere a pronúncia em caso de dúvida, por considerá-lo incompatível com os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência. Segundo o Ministro, admitir qualquer dúvida na pronúncia comprometeria a justiça e a segurança jurídica.
Injustiça epistêmica
O conceito de injustiça epistêmica, conforme desenvolvido por Miranda Fricker, foi fundamental na análise do Ministro Schietti. A injustiça epistêmica ocorre quando a credibilidade de um indivíduo é injustamente diminuída devido a preconceitos e estereótipos. No caso do recorrente, sua condição socioeconômica e cor de pele comprometeram sua credibilidade, resultando em uma presunção automática de culpa. O Ministro destacou que a credibilidade atribuída aos depoimentos policiais, sem a devida corroboração, exemplificava essa injustiça.
Miranda Fricker define injustiça epistêmica como a situação em que o ouvinte desqualifica o relato do falante com base em preconceitos identitários, impedindo uma avaliação justa e imparcial do testemunho. No contexto brasileiro, o racismo estrutural agrava essa dinâmica, frequentemente desqualificando os relatos de indivíduos pertencentes a grupos vulnerabilizados, como negros, mulheres, e pessoas LGBTQIA+.
O racismo como engrenagem do sistema de justiça criminal
O Ministro Schietti também mencionou as reflexões da professora Sueli Carneiro sobre o racismo estrutural no Brasil, que opera como uma metáfora de criminalidade, levando a uma presunção automática de culpa. Ele ressaltou a necessidade de um exame rigoroso e imparcial das provas, livre de preconceitos que possam comprometer a justiça.
Além disso, o conceito de injustiça epistêmica é ampliado com a contribuição de José Medina, que sugere que a credibilidade deve ser vista como um bem finito, cuja má distribuição gera injustiças. A atribuição excessiva de credibilidade a depoimentos policiais, em detrimento de acusados pobres e negros, exemplifica essa distribuição assimétrica de credibilidade, resultando em decisões injustas.
Portanto, o julgamento do RESP 2037491/SP representa um marco na aplicação dos conceitos de standard probatório e injustiça epistêmica no direito penal brasileiro. O voto do Ministro Schietti enfatiza a necessidade de um standard probatório elevado para a pronúncia, garantindo que apenas casos com indícios suficientes de autoria ou participação sejam levados ao Tribunal do Júri. Essa abordagem assegura uma justiça mais equitativa e justa, protegendo os direitos dos acusados e promovendo a imparcialidade no julgamento. Fundamental, no entanto, que a defesa especializada esteja conectada com os conceitos que foram utilizados na formulação do precedente.