União estável entre três mulheres não é considerada bigamia, afirmam especialistas

Wanessa Rodrigues

A união estável entre três mulheres, registrada no Rio de Janeiro neste mês de outubro, tem gerado discussões acerca da chamada família poliafetiva e seus efeitos legais. A união foi registrada pela tabeliã do 15º ofício de notas do Rio de Janeiro. De acordo com a tabeliã, o fundamento jurídico para a formalização desse tipo de união é o mesmo estabelecido na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2011, ao reconhecer legalmente os casais homossexuais.

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Advogada e professora Lana Carmo de Araújo observa que a família poliafetiva é conceituada pela doutrina, mas ainda não possui legislação que a reconheça.

Um dos questionamentos é sobre a possibilidade de caracterização de bigamia. Para a advogada e professora Lana Carmo de Araújo, especialista em Direito Civil e Processo Civil, este não é o caso, pois o instituto da bigamia só se constitui quando há a realização de um casamento sem a extinção do vínculo de outro casamento preexistente. Porém, Lana observa que este relacionamento plúrimo afronta um dos princípios inseridos no Direito das Famílias brasileiro que é o princípio da monogamia.

A especialista observa que a família poliafetiva é conceituada pela doutrina, mas ainda não possui legislação que a reconheça. Segundo a especialista, até o dia em que os cartórios de registro civil puderem legislar, ou o próprio Legislativo normatizar sobre este tipo de relacionamento, a família poliafetiva não surtirá efeitos legais como a União Estável, apesar do registro civil. Isto porque o mero registro não garante o reconhecimento legal da União Estável, mas é meio de prova que poderá ser utilizado no convencimento do juiz.

A advogada especialista em Direito de Família, Chyntia Barcellos, declara que o argumento de bigamia beira única e exclusivamente a intenção de exclusão dessas novas famílias. A especialista lembra que o Direito de Família é um Direito em constante movimento. E essa modalidade se enquadra nas novas conjugalidades, denominadas uniões poliafetivas.  Chyntia ressalta que esses vínculos plurais começam de modo tímido a buscarem formalização, como no caso em questão, e que do ponto de vista jurídico, o que interessa são os efeitos patrimoniais, direitos/deveres, que esse afeto, oriundo do vínculo produzem.

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A advogada especialista em Direito de Família, Chyntia Barcellos, lembra que o Direito de Família é um Direito em constante movimento.

Ao desaguarem na Justiça é dever do julgador dar resposta, dentro da premissa de que, por analogia, costumes e princípios gerais do Direito, devem ser decididos. “Além disso, em Direito, o que não está proibido, é permitido, pois nos termos do artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, ‘ninguém será obrigado fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’”, diz a especialista.

Ademais, conforme Chyntia, o novo Código de Processo Civil, que entrará em vigor em março de 2016, traz um novo instituto as técnicas de ponderação (artigo 489, parágrafo segundo), que dá poderes ao juiz de decidir na ausência de lei, segundo princípios preponderantes e fundamentados dos casos proposto. “Fato este ainda de grande discussão, mas que abarca a possibilidade de análise da união poliafetiva”, observa.

Projetos futuros
Tendo em vista que o Direito deva normatizar os fatos de uma sociedade para que seus beneficiários não fiquem marginalizados, segundo salienta Lana, este tipo de união, embora ainda não seja reconhecida como entidade familiar, pode ser objeto de projetos de leis futuros, até mesmo de Emendas Constitucionais por se tratar de tema defeso na Carta Magna.

Lana acredita que, embora haja um registro civil, as três mulheres não conseguirão ter acesso a benefícios como os concedidos a outros casais, como referentes a plano de saúde ou INSS. Isso porque, não possui reconhecimento legal como União Estável, sendo considerado pelo nosso legislador como relações não eventuais caindo no conceito de concubinato. “E o concubinato não gera efeitos legais no nosso ordenamento jurídico”, diz.

Para Chyntia, provavelmente os direitos serão alcançados em razão da relação de co-dependência. Porém, ela observa que esse também será um caminho que ira desaguar no Judiciário. A advogada diz que, muito embora, parte da sociedade, principalmente as bancadas fundamentalistas do Congresso Nacional, visa ao invés de ampliar, restringir o conceito de família pelo Estatuto da Família, essa questão ainda enfrentará longo caminho até um consenso.

“É preciso deixar a moralidade e se atentar para os fatos e seus efeitos no mundo jurídico, muito embora seja novo, muito embora seja a monogamia a regra, porém sem ser estática em razão da complexidade da vida humana”, completa Chyntia

Filho
Além da união estável em si, as três mulheres fizeram testamentos patrimoniais e vitais. O próximo passo delas é gerar um filho por meio de inseminação artificial. Por isso, a declaração da relação foi acompanhada dos testamentos, que estabelecem a divisão de bens e entregam para as parceiras a decisão sobre questões médicas das três cônjuges. Para a tabeliã, os documentos poderão ser válidos caso, no futuro, a relação estável do trio resulte em processos judiciais, já que não há leis específicas para o caso.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), este é o segundo trio que declara oficialmente uma relação. O primeiro caso aconteceu em Tupã, no interior de São Paulo, em 2012. Na ocasião, um homem e duas mulheres procuraram um cartório para registrar a relação.