Projeto de lei quer regulamentar transmissão de heranças digitais

Na noite de 8 de dezembro de 2009, a norte-americana Janna Moore Morin caminhava em direção ao seu apartamento na cidade de Omaha, estado de Nebraska, quando morreu após ser atingida por um veículo Limpa-Neve. A morte da jovem de 28 anos, que havia se casado há apenas dois meses, gerou grande choque após ser noticiada na imprensa e sua página no Facebook passou a receber centenas de mensagens de condolências.

Muitas destas mensagens podiam ser visualizadas por todos aqueles que eram amigos de Janna na mídia social, fato que, após algum tempo do acidente, passou a incomodar a família da jovem. Sua irmã mais velha, a professora Melissa Ann Bonifas, declarou em entrevista à Rede Inglesa BBC, que o fato de Janna continuar “viva” no Facebook era motivo de dor entre os familiares.

“O problema que temos agora é que sua imagem está sempre aparecendo, está sempre em fotos de seus amigos. Depois de um tempo, isso tem de acabar. Chega-se ao ponto em que você aceitou as coisas, em que você quer ver as fotos apenas quando deseja, e não apenas quando elas aparecem na sua frente. Isto se torna até mesmo um obstáculo ficar online no Facebook. Um dos meus irmãos nem usa mais sua conta, porque ele não gosta de ser lembrado do que aconteceu a todo momento em que está online”, disse Melissa à BBC.

O impasse ganhou repercussão nacional e internacional, e o parlamentar norte-americano John Wightman, do estado de Nebraska, fez uma proposta de Lei para regulamentar o direito dos representantes legais de pessoas falecidas ao acesso e gerenciamento de suas “propriedades digitais”. O texto do projeto diz que os herdeiros devem ter o poder de “controlar, conduzir, continuar ou terminar qualquer conta da pessoa falecida em qualquer rede social, microblog, serviços de mensagens curtas ou serviço de email”.

No Brasil, tramita atualmente no Congresso Nacional um Projeto de Lei com praticamente o mesmo objetivo da proposta do parlamentar de Nebraska. De autoria do deputado federal Jorginho Mello (PSDB/SC), o PL 4.099/12 já foi aprovado pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados e, atualmente, está aguardando aprovação do Senado Federal. O projeto propõe a inclusão de um parágrafo único no artigo 1788 do atual Código Civil, que dispõe sobre as regras de transmissão de heranças. O texto determina que “serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança”.

De acordo com Jorginho Mello, diante da omissão das Leis brasileiras sobre o assunto, no caso de contas digitais em que nenhum familiar conheça o login e a senha da pessoa falecida, estas contas correm o risco de ficarem ativas “eternamente”, sendo absolutamente necessário que seu acesso para os herdeiros seja viabilizado.

“Em casos de morte do titular, os familiares que desejem encerrar essa conta, em razão dos inúmeros transtornos que a situação gera, têm recorrido ao judiciário para obter esse direito. Os juízes têm decidido de maneiras diferentes, gerando controvérsias sobre a questão. A finalidade do PL 4.099 é suprir a omissão legislativa nesse ponto, especificando expressamente um direito para facilitar essa transferência do domínio” disse o deputado, em entrevista ao Última Instância.

Riscos

Jorginho Mello explica que a intenção buscada com o PL 4.099 é facilitar o procedimento de transferência da “herança digital”, tendo em vista as dificuldades já enfrentadas no momento de luto pelos quais as famílias passam. “Buscamos simplificar, evitando o prolongamento do sofrimento, que muitas vezes ocorre pela dificuldade de se encerrar uma conta virtual por falta de dados e informações pessoais. Como a proposição é bem clara, uma vez aprovada, creio que ela vai embasar o Judiciário, evitando maiores contendas”, afirmou.

Quando se deu o impasse acerca da morte e cancelamento do perfil de Janna Moore no Facebook, a empresa afirmou que, por questões de segurança, usuários deveriam estabelecer ainda em vida quais pessoas poderiam ter o direito ao acesso à sua conta após seu falecimento. Especialistas da área também alertam para outros riscos, como questões de privacidade, não apenas da pessoa falecida, mas também daqueles que se comunicavam com elas.

Para Jorginho Mello, no entanto, esta não deve ser uma preocupação. Segundo ele, a herança digital deve ser entendida como qualquer outro tipo de herança. O parlamentar relata que sua proposta não levou em consideração possibilidades como, por exemplo, o mau uso das contas digitais dos falecidos pelos herdeiros.

“Entendo que herança é herança. A partir do momento que uma pessoa herda um imóvel, por exemplo, ela tem o domínio sobre aquele bem e faz o uso que achar melhor. Se uma pessoa herdar o conteúdo digital de um parente falecido e fizer mau uso, existem leis que podem para punir essa prática, como o estelionato”, disse.

O deputado ressalta que a transferência automática já está prevista no atual Código Civil, e que sua intenção era fazer constar expressamente a questão acerca dos conteúdos digitais. Segundo Jorginho Mello, o projeto “Nada mais é do que uma extensão do que já existe no ordenamento sucessório”.

Marco Civil da Internet

Fernando Stacchini, advogado especialista em Direito Digital, concorda que o Código Civil, de fato, já contém o princípio de sucessão das posses da pessoa falecida para seus herdeiros. Ele ressalta, no entanto, que por conta disto o projeto de Lei 4.099 pode criar discordâncias no ambiente jurídico. “Se a herança já abrange tudo que é do indivíduo, porque alterar o Código Civil para deixar isto claro? Se eu específico uma coisa [herança digital], passo a ter necessidade de especificar todas as outras”, explica o advogado.

Segundo Stacchini, o Código Civil não precisaria ser alterado para resolver os impasses a cerca da herança digital. Para ele, o estado deveria fiscalizar de maneira mais eficiente os produtos e serviços oferecidos atualmente na Internet, para que estes não contenham termos de uso contrários ao atual ordenamento jurídico. “ O Código Civil é claro: herança é herança. Nenhuma condição de uso para produtos e serviços na internet poderia prevalecer sobre o Código Civil”, ressalta.

De acordo com o advogado especialista na área, o mais correto seria aguardar a consolidação da jurisprudência sobre a matéria no judiciário, e a partir disto determinar o que está ou não de acordo com o Código Civil. Stacchini, no entanto, reconhece que este tipo de jurisprudência demoraria a ser consolidada e reconhece que o projeto de Lei do deputado Jorginho Mello pode evitar muitas polêmicas e constrangimentos para os herdeiros.

“A jurisprudência iria demorar muito. A dinâmica da vida na Internet é outra, e este ponto tem de ser esclarecido logo, pois tem gerado muitas polêmicas. Só o fato de eu precisar entrar na justiça para ter acesso aos bens de meu parente falecido já é muito constrangedor. Todos estes problemas podem ser evitados com este projeto de Lei”, afirmou.

Contudo, a solução, não só para este problema, mas para tudo aquilo que envolve o ambiente digital, poderia ser resolvida por outro projeto de Lei: o PL 2126/11, conhecido popularmente como o Marco Civil da Internet.

“Se a gente aprovasse logo o Marco Civil da Internet, todos estes casos poderiam ser tratados ali. Os problemas como as obrigações dos prestadores de serviço online e provedores de acesso são definidas de maneira mais sistemática, e dão base para que você possa pleitear um conteúdo ou outro, desta ou daquela maneira” , afirmou Stacchini.

Para o advogado, todo e qualquer assunto referente a Internet deveria ser discutido sempre no âmbito do Marco Civil. Segundo o especialista, o projeto de Lei traz análises e interpretações de textos legais que facilitariam as decisões do Poder Judiciário. “No fim das contas, o Marco Civil da Internet é a Constituição do mundo digital”, conclui Stacchini.

O PL 2126/11, atualmente apensado ao PL 5403/01, pretende regular o uso e o oferecimento da Internet no País, definindo uma série de princípios, garantias, direitos e deveres na grande rede. De acordo com o relator da proposta, o deputado federal Alessandro Molon (PT/RJ), o Marco Civil da Internet enfrenta resistência para ser aprovado atualmente por conta do interesse e influência exercida por grandes empresas de telecomunicações. Em recentes declarações, o parlamentar defendeu que o projeto seguisse para votação em plenário mesmo sem acordo entre os líderes partidários, o que pode acontecer já nesta terça-feira (29/10). Fonte: Última Instância