Presidente da Associação dos Procuradores do Estado de Goiás defende “paridade de armas” para a Advocacia Pública brasileira

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Procurador Claudiney Rocha

Comemora-se, neste mês março, o Dia Nacional da Advocacia Pública, função essencial para o bom funcionamento de todos os órgãos públicos, o que significa defender, formular e fiscalizar políticas públicas que tenham como objetivo maior o bem-estar da sociedade.

Claudiney Rocha, presidente da Associação dos Procuradores do Estado de Goiás, ex-analista do Supremo por 5 anos no gabinete do ministro Marco Aurélio Mello e mestre em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal de Goiás (UFG), explica o momento da advocacia pública no país, seus desafios e o que falta para ter “paridade de armas’ com outros órgãos essenciais à Justiça do Brasil.

Ele acaba de ser nomeado membro da comissão de estudo, acompanhamento e proposição de medidas para ampliação dos debates sobre a autonomia das Procuradorias-Gerais dos Estados e do DF, grupo criado pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal.

Sobre esses temas, ele concedeu entrevista ao Rota Jurídica. Confira abaixo tudo o que foi informado por ele.

Como vê a atuação da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape) no Brasil de hoje? Quais são seus principais desafios?

A Anape tem mostrado uma presença importante no Congresso Nacional, acompanhando pautas como a reforma tributária, a reforma administrativa e a PEC do teto de gastos. Também tem tido uma presença forte no STF em algumas pautas que dependem dessa representação da ANAPE, envolvendo leis de todos os estados que tocam na Procuradoria. O principal desafio é representar uma categoria que difere muito de um estado para outro. É um desafio na medida em que os regimes jurídicos e remuneratórios das procuradorias são muito diferentes em virtude das legislações estaduais.

Quais conquistas da Procuradoria, em nível estadual ou nacional, que podem ser apontadas como benefícios diretos para a sociedade?

Uma conquista importante foi a reversão de um projeto que tirava a legitimidade da procuradoria nas ações de improbidade administrativa. Com a PGE tendo legitimidade, ela pode acionar políticos ou outros gestores que eventualmente tenham cometido abusos. A PGE serve como uma guardiã do interesse público.

Como vê o atual momento da advocacia pública no país?

Momento muito desafiador. Há a iminência de uma reforma administrativa, a reforma tributária, que acaba tocando na Procuradoria, e há alguma incerteza de como será o resultado final dessa reforma. É desafiador também em virtude da necessidade que a advocacia pública tem sentido de ter paridade de armas para atuar, de igual para igual, com outras categorias. A advocacia pública defende a política da forma como ela foi implementada pelos governantes eleitos. Em algum momento, quando essa política é questionada, é a advocacia pública que faz essa defesa. E ela se depara com instituições como a Defensoria Pública e o Ministério Público, que têm bastante autonomia gerencial, orçamentária e financeira. Isso faz diferença prática no dia a dia, porque além dessas instituições terem mais recursos para investir, elas têm uma condição de captação de pessoal diferenciada e de fazer investimento em tecnologia. A diferença de armas, hoje, no aspecto tecnológico, é muito grande. Daí a importância na questão da paridade.

A advocacia pública representa o interesse público primário, o início de toda uma cadeia. Quais são os maiores desafios para essa missão?

Fazer com que a administração pública trabalhe no sentido de atender as necessidades básicas da sociedade. Isso é muito mais do que defender o interesse público secundário, que é a pretensão de resistir a direitos que não mereceriam ser resistidos de maneira simplesmente a fazer o superávit no caixa administrativo. Durante algum tempo houve, em certa medida, a defesa desse interesse público secundário, mas a advocacia pública tem amadurecido, superando o modelo da conflituosidade e passado para o modelo de consensualidade. Isso importa em reconhecer direitos que de fato são pacíficos. Essa é uma postura que é da advocacia pública moderna, consensual e focada no interesse público primário, no atendimento às necessidades coletivas, de modo que apenas em situações em que o deferimento de um determinado direito a uma pessoa em específico não é passível de ser estendido a outras pessoas, ou seja, o princípio da igualdade não pode ser aplicado nessas situações, apenas aí a advocacia pública ainda invoca argumentos como o da Teoria da Reserva do Possível.

Por que a advocacia pública não tem a autonomia esperada no Brasil e como isso pode ter um impacto para o exercício do trabalho dos procuradores?

Ela ainda não tem a autonomia esperada em virtude de um receio de a advocacia pública se tornar um novo Ministério Público. Essa é uma visão equivocada, porque a advocacia pública defende políticas públicas, tais como foram concebidas pelos gestores democraticamente eleitos. A autonomia gerencial, orçamentária e financeira não significa que a advocacia pública vai “trair” o interesse do seu cliente, que é o administrador público. Então, a autonomia é plenamente compatível com a fidelidade no exercício do mandato legal que lhe foi conferido. E como essa autonomia impacta no trabalho? Dando condições e paridade de armas nos aspectos de pessoal, tecnologia e investimento na instituição. Com isso, as políticas públicas são melhor concebidas. Outro ponto importante: sempre se debateu sobre advocacia de governo e advocacia de Estado. A advocacia pública será mais próxima de um modelo tanto considerado de advocacia de Estado, quanto maior a liberdade e independência técnica que tenha. A autonomia também trabalha nesse sentido: de dar essa condição de exercer uma advocacia de Estado.

A tensão política vivida no país pode contaminar o trabalho da advocacia pública?

Não acho que essa tensão possa contaminar o trabalho da advocacia pública. Nós trabalhamos em defesa de um cliente, um constituinte, e esse é trabalho técnico. Tanto que não fazemos juízo de valor, não entramos no mérito de ato administrativo, não entramos no aspecto da conveniência ou da oportunidade dessa ou daquela opção política. Hoje, a advocacia pública tem maturidade técnica suficiente para desenvolver seu trabalho sem se contaminar com aspectos ideológicos, que são próprios do campo da política.

Qual a sua avaliação da política de cotas para concursos? Em especial para o caso do Judiciário, houve avanços? É preciso fazer uma reavaliação dessa política?

Na minha visão, a política de cotas para concursos precisa ser ampliada para além do Judiciário. Essa política tem tido avanços no Judiciário, tem aumentado gradualmente a representatividade das pessoas negras, do povo preto ou pardo, mas ela tem feito isso de forma bastante lenta. Não acho que nesse momento seja necessário fazer uma reavaliação da política. O que precisa acontecer é uma ampliação dessa política para outras categorias, como a Procuradoria. Eu sei que o Ministério Público já adota, a Defensoria também. O poder Executivo precisa encampar essa política e adotar a cota racial em concurso como critério geral.

Sobre políticas públicas, hoje se fala muito do papel do Judiciário nesse campo, principalmente depois da pandemia. Acha que o Judiciário pode continuar tendo essa função de liderar o debate ou vai se voltar mais como um moderador?

Eu acredito que o Judiciário tenha refluído bastante e caminhado bastante no sentido da autocontenção. Aquele momento de ativismo judicial, de um protagonismo maior, a meu ver, passou. O Judiciário sofreu muitas críticas com relação à representatividade e à legitimidade democrática de suas decisões. E principalmente das escolhas entre princípios e direitos fundamentais. Eu sinto que o Judiciário vai voltar a exercer um papel de última salvaguarda de direitos fundamentais de dar primazia à decisão do gestor como regras. A menos em situações em que haja algum tipo de ilegalidade ou de desvio de finalidade do ato administrativo.

Como a advocacia pública já está sendo afetada pela inteligência artificial? Quais cuidados devem ser tomados? Existe alguma proposta de regulação específica nesse sentido?

Já está sendo afetada no sentido de que o Estado tende a estar no polo passivo ou ativo de muitas demandas judiciais. Aqui em Goiás, tivemos a notícia de que uma juíza de uma determinada Vara extinguiu 5 mil processos com um único clique. Cinco mil decisões com um único clique. Sem dúvida, impacta o trabalho da Procuradoria, que não deve demorar para conseguir todos os recursos possíveis para executar esses trabalhos. Isso é o mais importante: que a PGE tenha paridade de armas para dialogar num ambiente em que os demais players já estão lançando mão de recursos de Inteligência Artificial. A Procuradoria, até o momento, não tem tido condições de investir de forma significativa nesses instrumentos tecnológicos. Existe uma série de preocupações quanto à regulamentação da inteligência artificial, mas são discussões preliminares.

A Advocacia Pública é a única das funções essenciais à Justiça que não é dotada pela Constituição de autonomia administrativa, orçamentária e financeira. Isso faz com que o controle interno da administração fique fragilizado. Como mudar isso?

Essas condições fragilizam o controle interno porque a Procuradoria tem condições de aferir a legalidade do ato. Em última análise, é ela que dá segurança jurídica ao gestor por meio das consultorias. No âmbito do contencioso, nos aspectos financeiro, de recursos humanos e tecnológicos e também no âmbito consultivo, há uma fragilidade em não dotar a Procuradoria de autonomia. Isso faz com que, no extremo, a procuradoria não tenha o respaldo e o respeito para fazer valer as orientações quando sejam eventualmente contrárias ao que se espera em termos de pretensões do gestor.

A Advocacia Pública trabalha na defesa dos princípios da Administração Pública, contribuindo para a melhora do nível de eficiência administrativa e protegendo o patrimônio público da corrupção. Como fica esse trabalho depois da Lava Jato e os rescaldos que conhecemos?

Esse trabalho de combate às tentativas de corrupção não tem fim. Evidentemente, a Procuradoria olha para o aspecto da legalidade e segurança jurídica, requisitos legais da observância ao direito. A Lava Jato acabou se valendo de meios ilegais em virtude dos fins, legítimos. Por conta dessa escolha acabou sofrendo uma série de reveses no meio do caminho que acabaram por descredibilizar a operação e também por desconstituir algumas entregas que já tinham sido feitas. Por exemplo: uma série de recursos públicos que já haviam sido resgatados pela Lava Jato precisaram ser devolvidos em virtude das ilegalidades que foram apuradas no modo de proceder da operação. É uma preocupação que se tem que a instituição não se torne uma espécie de Batman, que tenta combater nas sombras, por métodos ilegais, pelos motivos legítimos e bons. Ainda que se tenham bons motivos, não se pode lançar mão de métodos ilegais.

O que acha da PEC 82/2007, apresentada pelo então deputado federal Flávio Dino, hoje ministro do STF? A proposta foi aperfeiçoada na Comissão Especial e trata das autonomias administrativa, orçamentária e técnica da Advocacia Pública.

É uma PEC que supre uma omissão constitucional no tocante à autonomia da advocacia pública. Resolve algo que já foi feito para a Defensoria por meio da Emenda Constitucional 45. Não se pode considerar que exista uma função essencial à Justiça que seja menor em relação às outras funções, porque o trabalho que a advocacia pública faz é extremamente importante. É o trabalho de ajudar a formular políticas públicas, de implementar e fazer o controle interno delas. Também ajuda a colaborar e a reavaliar essas políticas e fazer a defesa dessas políticas públicas no âmbito dos órgãos de controle, do Judiciário, desde a primeira até a última instância, o STF. Então, é um trabalho muito importante para ficar nas mãos de uma instituição carente de autonomia gerencial, administrativa, orçamentária e financeira que caracteriza as outras funções essenciais à Justiça. Isso é algo que depõe contra a paridade de armas no aspecto de recursos humanos, financeiros e tecnológicos. A quem interessa deixar a advocacia pública desguarnecida de autonomia gerencial, orçamentária e financeira? São atributos que ornam todas as outras funções essenciais à Justiça.