Paixão, possessão e morte: casos de feminicídios marcam tribunal do júri

Lilian Cury

O sentimento de posse se confunde com amor e o término de um relacionamento transforma a dor em ódio, implicando na dificuldade de aceitar o fim, geralmente imposto unilateralmente. Esses elementos são propulsores dos crimes passionais, geralmente cometidos por homens contra suas atuais ou ex-companheiras, conforme demonstram dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil, segundo a mesma entidade, estima-se que 13 mulheres morram por dia, vítimas de crimes do tipo, totalizando quase 5 mil mortes violentas por ano. Os dados colocam o País em 5º lugar no mundo com mais homicídios femininos, segundo a Organização das Nações Unidas.

A calçada da Rua 47, em Itapuranga, ficou manchada para sempre na lembrança da população local. Na esquina com a Rua 54, duas pessoas foram brutalmente assassinadas a facadas no dia 13 de janeiro de 2014. Kêmily Andrielle Maia Faria, de apenas 13 anos, e o amigo Eduardo de Camargo Oliveira, de 20 anos, haviam saído do culto noturno da igreja Assembleia de Deus, quando foram abordados pelo ex-namorado da jovem, Lázaro Ferreira de Castro Júnior, de 19 anos, inconformado com o fim do relacionamento, que havia durado apenas três meses.

Transtornado de ciúmes, ao ver que supostamente a garota já poderia ter um novo amor, Lázaro deu uma gravata em Kêmily e lhe desferiu golpes de faca no tórax, abdômen e pescoço. Eduardo teria ficado sem reação e não teve tempo de fugir. Em seguida, ele também foi esfaqueado e morto no local. Conforme relatos, Lázaro ainda chutou várias vezes a cabeça do jovem estendido no chão. Antes disso, o rapaz já havia ameaçado dias antes: “se você não for minha, não será de mais ninguém” e “se eu ver você com outro cara, matarei os dois”. Uma tragédia anunciada.

Levado a júri popular no último dia 29, Lázaro foi condenado a 43 anos e 6 meses de reclusão, após sessão presidida pela juíza substituta Julyane Neves (foto à direita). A magistrada estabeleceu, também, valor mínimo de reparação de danos em R$ 100 mil para os genitores das vítimas, a serem pagos pelo réu, mediante propositura de ação cível.

São muitos Lázaros, Kêmilys e Eduardos espalhados pelo Brasil, que o enredo da música Domingo no Parque, de Gilberto Gil, soa como uma crônica. Na sentença, a magistrada Julyane Neves destacou a preocupação com esse tipo de conduta, que necessita de conscientização social, uma vez que os crimes são perpetrados em nome do amor.

“Seria esse o mesmo amor citado na Carta de São Paulo aos Coríntios, ou seria, na verdade, o Desamor, feição malévola e cruel do sentimento mais aclamado e desejado? Sentimento que, no contexto de um crime passional, muitas vezes se transforma em sensação de posse e ciúme descontrolado. O agente, justificando-se deste Amor, ou melhor dizendo, desse desamor, ameaça, difama, denigre, maltrata e, como no caso dos autos, acaba por ceifar a vida da pessoa que diz amar, bem ainda daqueles que a cercam. O amor/desamor se torna subterfúgio para que condutas extremamente graves sejam praticadas contra a pessoa ‘amada’. Não se pode confundir o amor com o ciúme possessivo capaz de gerar tragédias com resultados irreversíveis, com os delitos aqui reconhecidos”, destacou na sentença, completando que Lázaro não cometeu o duplo homicídio em nome da paixão pela ex-namorada, mas sim por egoísmo e por desprezo pela vida humana.

Em Formosa, neste mês de junho, o Tribunal do Júri da comarca recebeu o primeiro julgamento por feminicídio. No banco dos réus, Cícero Alexandre Gomes da Silva, conhecido como Abacate, acusado de  agredir a ex-companheira Doralice Pereira dos Anjos, diversas vezes com chutes e golpes na cabeça até a morte.

Segundo a denúncia feita pelo Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO), a vítima sofreu traumatismo craniano, distensão das articulações do pescoço e esmagamento da face. O órgão ministerial pontuou que a Doralice havia se separado do acusado, justamente, pelas constantes ameaças e agressões, que se intensificavam com o abuso de álcool e drogas do homem.

Doralice não morreu na hora. Abacate, após os abusos, a deixou em casa e saiu, sem prestar socorro ou chamar ajuda. Na defesa, ele alegou que não teve intenção de matá-la. Os jurados não entenderam dessa forma e Cícero foi condenado a 20 anos e 9 meses de reclusão em regime fechado.

Estatística e ambiente propício

Se comparar com o total de homicídios no País, as mulheres são em menor número, uma vez mais de 90% das vítimas são homens, de acordo com o Atlas da Violência 2016, estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FPSP). Contudo, diferente dos homicídios masculinos, associados ao tráfico e ações criminosas diversas, a violência à mulher acontece no âmbito do lar. Segundo dados do Instituto Avante Brasil, quase 70% dos homicídios de mulheres ocorrem dentro de suas próprias casas, sendo cometidos pelos cônjuges, incluindo namorados, companheiros, noivos – atuais ou na situação de ex.

Para a psicóloga e docente universitária Vera Morselli, o problema é cultural. “Faz pouco tempo que a mulher brasileira saiu do ambiente privado para entrar no mundo público. Há essa questão de poder, que permite ao homem se sentir proprietário não apenas de bens materiais, mas também de bens humanos. Além disso, entender essa questão de gênero é compreender, também, que há, na relação entre o homem e a mulher, uma relação desigual: há muito mais tolerância em relação aos deslizes que os homens cometem e os homens têm muito mais poder de mando”, explica.

Abordar a violência pelo viés do agressor e romper essa cultura de poder e propriedade com que é vista a mulher é necessário para extinguir a violência de gênero, segundo acredita a psicóloga. A profissional, inclusive, coordena os Grupos Reflexivos de Goiânia, uma iniciativa pioneira que trata o assunto pelo viés dos autores dos atos. Uma vez denunciados, os juízes impõem, na medida protetiva, a participação compulsória nesses eventos, que incluem rodas de conversas com assistentes sociais, psicólogos e advogados.

Combater as ações incursas na Lei Federal 11.340/2006, popularmente conhecida por Lei Maria da Penha, e na Lei 13.104/15, que abrange o feminicídio, é uma grande preocupação do Poder Judiciário. No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, há a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar e Execução Penal, presidida pela desembargadora Sandra Regina Teodoro Reis (foto à esquerda). “Como não temos atribuição jurisdicional, nossas ações são voltadas ao desenvolvimento de projetos que contribuam para prevenção de casos abrangidos nas leis, além, de, é claro, fomentar a rede de enfrentamento à violência contra as mulheres, que inclusive é uma das metas nacionais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para 2017”. Fonte: TJGO