STJ reconhece ilegalidade de provas obtidas sem gravações de câmeras corporais em caso de tráfico de drogas

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em recente decisão proferida no julgamento do Habeas Corpus nº 896306/SC, trouxe relevantes reflexões sobre o respeito às garantias fundamentais no processo penal, especialmente no que tange ao uso de câmeras corporais pela polícia e a proteção constitucional do domicílio. O caso analisado expôs graves falhas na atuação dos agentes de segurança pública, relacionadas à ausência de documentação audiovisual de diligências, e resultou no reconhecimento da ilicitude de provas obtidas em violação a direitos fundamentais.

O caso envolveu a prisão, em Santa Catarina, de acusado de tráfico de drogas. As diligências policiais, embora registradas parcialmente, não apresentaram imagens cruciais do momento da abordagem, da entrada nos imóveis nem da apreensão de materiais ilícitos, apesar dos agentes estarem devidamente equipados com câmeras corporais. Este contexto fático motivou a impetração do habeas corpus, em que a defesa questionou a legalidade da prova e do processo penal instaurado.

Em acordão conduzido pelo voto do Ministro Rogério Schietti Cruz, ao conceder a ordem, fundamentou-se em sólidas bases jurídicas e doutrinárias, ressaltando a imprescindibilidade da fiscalização da atuação policial, a responsabilidade do Estado no ônus da prova e o perigo da perpetuação de injustiças processuais a partir da confiança irrestrita em testemunhos não corroborados. Este artigo se propõe a analisar o caso e a construção jurídica firmada no acórdão.

Resumo do caso submetido ao STJ

O caso teve início em uma abordagem policial no Condomínio Rúbia Kaiser, quando o investigado e outros três indivíduos teriam corrido ao avistar viatura da Polícia Militar. Os agentes, então, ingressaram em dois apartamentos: o primeiro, pertencente a uma moradora identificada, e o segundo, o apartamento 13, supostamente abandonado e utilizado para atividades de tráfico de drogas. A partir dessa incursão, foram apreendidas drogas, dinheiro e celulares em um quarto atribuído ao paciente.

Apesar de estarem equipados com câmeras corporais, os policiais não registraram em vídeo os momentos cruciais da ação: o ingresso nos apartamentos, a abordagem aos suspeitos e a apreensão dos materiais ilícitos. Apenas parte das imagens de uma câmera foi juntada aos autos, sem esclarecimento sobre a ausência das demais gravações. Ainda assim, a prisão em flagrante e a manutenção da denúncia fundamentaram-se exclusivamente nos testemunhos dos agentes públicos.

A defesa alegou que a ausência de documentação audiovisual tornava ilícitas as provas obtidas e inviabilizava a persecução penal. Questionou-se também a narrativa de que o apartamento era abandonado, já que nele foi encontrado um cômodo pessoalizado, indicando moradia e, portanto, proteção constitucional. O habeas corpus foi impetrado visando o reconhecimento da ilegalidade das provas e a nulidade dos atos processuais que delas derivaram.

Papel e postura do delegado de polícia na investigação

O delegado de polícia responsável pelo inquérito, Vandilson Moreira da Silva, desempenhou um papel de relevo na elucidação da ilicitude das provas obtidas. Em seu relatório final, apontou que, apesar da existência de três câmeras corporais, não foram disponibilizadas imagens que registrassem o ingresso nos imóveis, a abordagem dos suspeitos e a apreensão dos materiais. Tal omissão foi interpretada como ausência de zelo na produção da prova por parte da corporação.

O delegado destacou também a inconsistência da narrativa policial, ressaltando que o apartamento supostamente abandonado, na verdade, apresentava características de habitação, como a existência de um quarto utilizado pelo paciente. Além disso, alertou para a prática comum de “floreamento” dos relatos policiais, mediante fórmulas padronizadas para justificar ações de busca e apreensão sem mandado judicial, prática que fragiliza a legalidade das diligências estatais.

Em sua análise, o delegado aplicou a teoria da perda de uma chance, sustentando que o Estado, ao negligenciar o registro adequado da diligência, perdeu a oportunidade de comprovar a regularidade de sua atuação. Com base nesses fundamentos, recomendou o desindiciamento de Ângelo Gabriel e dos demais corréus, por ausência de provas seguras que validassem a legalidade das buscas e apreensões realizadas. 

Voto do Ministro Rogério Schietti Cruz

No voto proferido no julgamento do habeas corpus, o Ministro Rogério Schietti Cruz enfatizou que a palavra do policial, embora importante, não pode ser utilizada de forma acrítica quando existem meios tecnológicos de comprovação dos fatos. Criticou duramente a ausência de registros das diligências pelas câmeras corporais e alertou para a necessidade de rigor na fiscalização judicial sobre a atuação estatal em matéria penal.

O Ministro também destacou a inconsistência da narrativa apresentada pelos policiais sobre o suposto estado de abandono do imóvel. Para ele, a existência de um quarto identificado como pertencente ao paciente revelava que o local era habitado, atraindo a proteção constitucional do domicílio, nos termos do art. 5º, XI, da Constituição Federal. Assim, considerou que o ingresso no imóvel sem mandado judicial não foi devidamente justificado pelas circunstâncias concretas.

Em seu voto, Schietti reconheceu que o Estado não se desincumbiu do ônus de provar a legalidade da busca pessoal e domiciliar. Assim, concedeu o habeas corpus para declarar a ilicitude das provas obtidas e determinar que o juízo de origem reavaliasse a viabilidade da ação penal, sem considerar os elementos probatórios ilícitos. A decisão foi unânime na Sexta Turma do STJ.

O papel da epistemologia jurídica na resolução do caso

O Ministro Rogério Schietti Cruz fundamentou parte importante de seu voto em conceitos oriundos da teoria das injustiças epistêmicas, desenvolvida inicialmente pela filósofa Miranda Fricker. Segundo essa teoria, injustiças epistêmicas ocorrem quando há prejuízo na posição de alguém como portador de conhecimento, em razão de preconceitos ou estruturas sociais desequilibradas. No caso analisado, o risco apontado foi o da credibilidade automática atribuída aos policiais, em detrimento de um escrutínio objetivo das provas.

Para aprofundar essa crítica, o voto citou estudos das professoras Clarissa Guedes e Lara Lino Ferreira de Oliveira, autoras do artigo “A identificação do acusado a partir de imagens de câmaras de segurança: a narrativa policial sobre o vídeo e a perpetuação de injustiças epistêmicas testemunhais”, publicado na obra coletiva Melhorar a prova (2024). As autoras argumentam que o desprezo pelas provas audiovisuais e a análise indireta dos fatos, apenas com base em testemunhos, perpetuam injustiças no sistema penal.

Assim, a decisão buscou alinhar-se a uma perspectiva processual penal contemporânea, que exige a produção e a análise crítica das provas, em respeito ao devido processo legal e à dignidade da pessoa humana. A confiança cega nos relatos policiais, sem a exigência de comprovação objetiva, é vista como uma prática incompatível com os valores constitucionais que regem o processo penal democrático. 

Conclusão do acórdão

O acórdão proferido pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça reafirmou a importância da preservação das garantias processuais no âmbito penal. Reconheceu-se que o Estado, ao dispor de tecnologia para registro de suas ações, tem o dever de utilizá-la de maneira eficiente e transparente, sob pena de ver suas provas invalidadas por ausência de confiabilidade e violação de direitos fundamentais.

A decisão reforçou a necessidade de revisão crítica da tradicional deferência às narrativas policiais, especialmente quando se dispõe de elementos técnicos que podem confirmar ou infirmar os relatos apresentados. O processo penal deve operar sob as premissas da efetividade do contraditório e da ampla defesa, impondo ao Estado o ônus de demonstrar a legalidade de seus atos mediante provas seguras e auditáveis.

Dessa forma, o habeas corpus concedido serviu para proteger não apenas o direito individual do paciente, mas também para afirmar um modelo de processo penal mais garantista, transparente e fiel aos preceitos constitucionais. Um importante precedente na luta contra práticas arbitrárias e na consolidação de um sistema de justiça criminal efetivamente democrático.