Autoridade na advocacia criminal: entre o ideal de defensor e a ilusão do influenciador jurídico

  1. A autoridade na advocacia criminal em tempos de mutação do poder

Em tempos de exposição performática nas redes sociais, em que consiste a autoridade na advocacia criminal?

Partindo desse questionamento, o presente artigo propõe uma reflexão crítica sobre os impactos das transformações sociopolíticas contemporâneas na legitimidade do advogado criminalista. A partir das elaborações filosóficas de Byung-Chul Han, pretende-se examinar se e como a autoridade da advocacia criminal se sustenta diante do atual regime de transparência, hipercomunicação e autoexploração.

A figura do advogado criminalista, historicamente identificada com a contenção do poder punitivo e com a defesa intransigente das garantias constitucionais, vê-se confrontada com os efeitos corrosivos de uma cultura digital que exalta a visibilidade, a egolatria e a performance. A autoridade, outrora alicerçada na técnica, na coragem institucional e no compromisso ético, passa a disputar espaço com modelos de influência efêmeros e métricas de engajamento.

  1. A mutação do poder e o declínio da negatividade

Byung-Chul Han sustenta que a sociedade contemporânea deixou para trás o modelo de poder repressivo e disciplinar para abraçar uma forma de domínio permissiva e sedutora. “Hoje, acreditamos que não somos sujeitos submissos, mas projetos livres, que se esboçam e se reinventam incessantemente” (HAN, 2018, p. 9). Essa mutação impacta diretamente a percepção de autoridade, uma vez que esta não mais se afirma por meio da imposição, mas pela adesão voluntária dos sujeitos.

Na chamada “sociedade do cansaço”, a autoridade tradicional, fundada na negatividade, cede espaço a formas de influência que operam sob o signo da positividade, do desempenho e da autoexploração (HAN, 2015, p. 14-16). O advogado criminalista, que tradicionalmente se posicionava como figura contramajoritária, provocadora de desconforto institucional, enfrenta hoje o desafio de afirmar sua autoridade em um ambiente que rejeita a dor, o conflito e o dissenso.

Além disso, a supressão da negatividade dificulta a emergência de posições de resistência e questionamento. Han afirma que “sem dor, sem negatividade do outro, no excesso da positividade, nenhuma experiência é possível” (HAN, 2018, p. 93). A autoridade, nesse novo ambiente, perde sua conexão com a alteridade e com o enfrentamento das estruturas de poder, tornando-se mais uma performance adaptativa do que um exercício crítico.

O exercício da advocacia criminal demanda confronto com estruturas, narrativas e práticas estatais de poder, o que pressupõe a presença de conflito e dissenso. No entanto, em uma cultura avessa à negatividade e centrada na harmonia artificial da performance, a função contramajoritária do defensor tende a ser percebida como incômoda ou disfuncional. O advogado que insiste em tensionar o processo penal a partir do lugar da defesa pode ser visto, não como figura de autoridade legítima, mas como entrave à fluidez institucional.

Essa inversão afeta a legitimidade simbólica da autoridade profissional. A crítica passa a ser desvalorizada, enquanto o consenso e a positividade ganham status de virtude pública. Em consequência, a autoridade passa a se basear menos na coragem de provocar a dúvida e mais na capacidade de produzir aceitação. Nesse contexto, a advocacia criminal corre o risco de se despolitizar, tornando-se mera prestadora de serviços jurídicos eficientes, mas desprovida de densidade ética e combatividade institucional.

 

  1. Psicopolítica, redes sociais e a erosão da autoridade institucional

Na era da psicopolítica, o controle não se exerce mais por dispositivos de coerção, mas pela captura da subjetividade. A captura da atenção nas redes sociais é um exemplo eloquente desse novo regime de poder, no qual o sujeito se transforma em produto de si mesmo, regulando e expondo sua própria imagem para se manter relevante. A autoridade do advogado criminalista é, nesse contexto, minada pela desconfiança generalizada e pelo imperativo da transparência total: “a liberdade e a comunicação ilimitadas se transformaram em monitoramento e controle total” (HAN, 2018, p. 19). A figura do defensor, ao ser confundida com a do acusado, é objeto de exposição pública e suspeição constante.

Nesse ambiente digital, redes sociais tornam-se arenas em que se performa uma imagem de autoridade. Likes, seguidores e compartilhamentos passam a constituir o novo capital simbólico, substituindo o prestígio fundado na experiência, na argumentação e na coerência. Conforme Han observa, “o panóptico digital faz uso de uma revelação voluntária por parte de seus internos” (HAN, 2018, p. 57). Nesse regime de autoexposição constante, cria-se uma ilusão de autoridade baseada em visibilidade e em reconhecimento superficial, dissociada da competência jurídica propriamente dita.

Essa ilusão, ainda que sedutora, é frágil. Ela depende do fluxo constante de atenção e engajamento. Uma autoridade assim constituída não resiste à contradição, nem ao escrutínio crítico. Ao privilegiar a imagem sobre o conteúdo, as redes sociais favorecem uma autoridade performática, mas destituída de densidade técnica. Com isso, o advogado criminalista corre o risco de se tornar um influenciador jurídico, cuja autoridade é medida por métricas e não por princípios – e influenciadores jurídicos nada mais são do que produtos.

  1. Poder, mediação e reconhecimento

No ensaio O que é poder?, Byung-Chul Han (2019) sustenta que o poder autêntico não se impõe pela força ou coerção, mas se realiza por meio da mediação: “O poder do ego alcança seu máximo justamente quando o alter obedece a sua vontade a partir de sua própria vontade” (p. 15). Na advocacia criminal, essa concepção se traduz na construção de uma autoridade que não se funda na hierarquia, mas na capacidade de gerar reconhecimento junto aos demais atores processuais – inclusive o Judiciário e o Ministério Público – sem renunciar à função de defesa.

Essa autoridade não é domínio, mas influência legítima, sustentada pela competência técnica, integridade e coerência. Em tempos de crise institucional, o advogado criminalista precisa reposicionar-se, abandonando qualquer pretensão de ostentação de poder, para conquistar credibilidade. Esse reconhecimento, porém, não é automático: exige sólida formação jurídica e constante aprimoramento, o que revela não só excelência acadêmica, mas compromisso com a missão contramajoritária da defesa penal.

O respeito às formalidades processuais, nesse contexto, ganha centralidade. A forma não é mero ritualismo, mas instrumento de contenção do poder punitivo estatal. Quando o defensor observa a liturgia do processo, reafirma os limites da atuação estatal e protege o cidadão contra arbitrariedades, reforçando sua própria autoridade simbólica e o papel essencial das garantias fundamentais.

A autoridade do advogado criminalista também se manifesta quando ele consegue deslocar o foco do julgamento da figura do acusado para a necessidade de controle do exercício do poder punitivo. O processo penal passa, então, a ser compreendido como espaço de contenção de abusos e de afirmação de direitos. Nesse sentido, o advogado torna-se mediador entre o cidadão e o Estado, entre o acusado e o sistema de justiça.

Sob a ótica de Han, o poder cria significância ao estabelecer horizontes de sentido. A autoridade do advogado se consolida quando seu discurso é capaz de sensibilizar os atores processuais sobre os limites do poder penal e de produzir compreensão crítica em meio à erosão democrática. É nesse vínculo entre saber técnico, coragem ética e intervenção crítica que a autoridade se realiza – não por imposição, mas pelo reconhecimento de sua relevância política e jurídica.

  1. Conclusão

A autoridade na advocacia criminal, em tempos de psicopolítica e hipertransparência, exige mais do que presença formal: demanda densidade simbólica, resistência subjetiva e competência argumentativa. O desafio é manter-se relevante em uma sociedade que desconfia da mediação, despreza a negatividade e idolatra a visibilidade.

Nesse cenário, impõe-se distinguir a autoridade autêntica da autoridade performática. Esta última, baseada em métricas digitais e aparência, é frágil, passageira e dependente da validação exterior. Sustenta-se em curtidas, seguidores e estética retórica, mas não resiste ao embate jurídico real, à complexidade do processo penal e à exposição à crítica institucional. É uma autoridade de superfície, que se dissolve na ausência de engajamento ou diante do primeiro desafio técnico que exige densidade.

Por outro lado, a autoridade autêntica do advogado criminalista repousa sobre a consistência de sua prática, o rigor técnico de sua atuação e a integridade de seu compromisso ético com a defesa. É reconhecida não pela sua visibilidade momentânea, mas por sua capacidade de sustentar o dissenso, afirmar o contraditório e transformar o processo penal em espaço de produção de sentido jurídico e político.

Em última instância, enquanto a autoridade performática é efêmera como um post, a autoridade substantiva se constrói na persistência da resistência, no enfrentamento das arbitrariedades e na lealdade ao projeto constitucional de contenção do poder punitivo estatal e do devido processo legal.

Referências

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.

HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018.

HAN, Byung-Chul. O que é poder? Petrópolis: Vozes, 2019.