Os impactos da pandemia da Covid-19 nos direitos dos cidadãos

*Rolse de Paula

Desde o final de 2019 o mundo vem enfrentando uma realidade repleta de atribulações. Com a explosão dos casos de COVID 19 em todos os continentes, aquilo que as pessoas chamavam de “normal” ou “rotina”, de uma hora para outra, acabou virando de “cabeça para baixo”. Os contatos mais próximos, os toques, os cumprimentos e até as manifestações de maior afabilidade foram restritas, ou, até mesmo, banidas, em diversas partes do globo. Mas outro reflexo foi muito bem notado e exposto: as relações jurídicas também sofreram grandes alterações. Não apenas nos assuntos relativos ao Direito do Trabalho.

Vejam-se, verbi gratia, algumas determinações constantes em nossa atual Carta Magna:

Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015).

Art. 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

I – relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;

II – seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário;

III – fundo de garantia do tempo de serviço;

IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

V – piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho;

VI – irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

VII – garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável;

[…];

Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

Parágrafo único. O Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas (Incluído pela Emenda Constitucional nº 108, de 2020).

[…].

 

Mesmo com as normas existentes na atual Carta Magna, é possível que o Estado Brasileiro utilize seu poder de império para restringir direitos dos cidadãos, a fim de preservar o interesse social, ou melhor, dizendo, no intuito de manter incólumes os chamados interesses coletivos. Esse poder de império, em verdade, caracteriza a capacidade de o Estado impor, de modo soberano, a sua vontade com vistas a preservar os mais relevantes interesses públicos. Trata-se da aplicação prática do Principio da Finalidade Pública ou do Interesse Público, que se encontra previsto na Constituição Federal.

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO assim ensina a respeito da preservação do Interesse Público:

É que, na verdade, o interesse público, o interesse do todo, do conjunto social, nada mais é do que a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto se abrigando também o depósito intertemporal destes mesmos interesses, vale dizer, já agora, encarados eles em sua continuidade histórica, tendo em vista a sucessividade das gerações de seus nacionais.

Portanto, diante da flagrante ameaça que a pandemia representa, pode o administrador público, com respaldo no art. 5°, incisos XXIII a XXV, da CF/88, dentre outras normas aplicáveis, determinar o fechamento de algumas empresas públicas e privadas para garantir a proteção da coletividade. Além disso, o administrador público também pode emitir uma série de normas restringindo o exercício de determinados direitos trabalhistas previstos no artigo 7º da Constituição Federal e no corpo da CLT. Exemplo disso foi a adoção dos auxílios emergenciais, os quais valerão até o final de 2020, as suspensões temporárias dos contratos de trabalho e a redução proporcional dos vencimentos e das horas de trabalho.

Com relação ao direito à saúde, sabe-se que o mesmo fora elevado à categoria dos direitos fundamentais, por estar interligado ao direito à vida e à existência digna da pessoa humana, pois representa, de per se, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, sendo considerado, pela doutrina, pela jurisprudência, e pela legislação, uma obrigação do Estado e uma garantia de todos os cidadãos. Neste 2020 o Poder Público, entre outras providências, determinou que as operadoras de planos de saúde fizessem a inclusão automática dos exames preventivos de COVID-19 em suas respectivas carteiras de proteção, sem que isso representasse aumento nas mensalidades pagas pelos usuários ou pelas empresas contratantes. Conforme ensina GOMES CANOTILHO (2007, p. 97), os direitos sociais, “na qualidade de direitos fundamentais, devem regressar ao espaço jurídico-constitucional, e ser considerados como elementos constitucionais essenciais de uma comunidade jurídica bem ordenada”.

Por fim, torna-se possível dizer que a Pandemia de COVID-19 trouxe reflexos, nem sempre bem-vindos, na esfera civilista. Não obstante, a força obrigatória dos contratos (“pacta sunt servanda”) – que tem aptidão até para afastar a lei dispositiva -, não se pode desprezar que os ajustes contratuais são celebrados dentro de uma realidade e perspectiva, o que lhes confere uma relação de prestação e contraprestação, de reciprocidade, o que leva à característica sinalagmática dos contratos. Rompida essa simetria, pode-se invocar uma cláusula implícita em qualquer contrato de cunho patrimonial, qual seja, a cláusula rebus sic stantibus. Na prática, isso significa que os contratos devem ser cumpridos tal como pactuados, enquanto o cenário permanecer tal como na época da sua celebração. Mas é bom que todos fiquem atentos que não é qualquer mudança de cenário que permite o rompimento ou modificação. Ainda mais porque o absoluto isolamento social, por meses a fio, pode ensejar graves modificações no mundo dos negócios e até no gerenciamento do Estado, levando a inevitáveis alterações que influem no equilíbrio econômico-financeiro.

A relevância da pesquisa se mostra patente na medida em que os principais ordenamentos jurídicos, baseados nas respectivas Constituições, trazem como fundamento o respeito à dignidade da pessoa humana.

*Rolse de Paula é advogada, fundadora do Projeto COCAJU – Congresso de Orientação de Carreira Jurídica, Diretora da Associação Brasileira de Advogados em Curitiba, Especialista em Direito Aplicado – Escola da Magistratura do Paraná, “Mentoring” para candidatos da Primeira Fase do Exame Unificado da Ordem dos Advogados do Brasil. Também está à frente do RCP Advocacia & Consultoria Jurídica (www.rcpjuridico.adv.br) 

REFERÊNCIAS

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 14ª edição, refundida, ampliada e atualizada, até a Emenda Constitucional 35, de 20/12/2001. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BRASIL. Código Civil e Constituição Federal (obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Lívia Céspedes e Fabiana Dias da Rocha). 67ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes, e; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada (vol. I). 4ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

CAPELLETTI, Mauro. Juízes irresponsáveis? – Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1989.

DONIZETTI, Elpídio, e; DONIZETTI, Tatiane. “Os reflexos da pandemia do Coronavírus sobre as relações contratuais”. Disponível no sítio http://genjuridico.com.br/2020/04/09/pandemia-relacoes-contratuais/ – acesso em 26/11/2020.

FREITAS, José Lebre de. Introdução ao Processo Civil: Conceitos e Princípios Gerais. 2ª edição. Coimbra: Coimbra, 2009.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 7ª edição, revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2002.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração e Programa de Ação de Viena. 1993. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/viena.htm.

Acesso em 5 de maio de 2019.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SILVEIRA, Vladimir Oliveira da, e; SILVA, Elio Ricardo Chadid da. A Efetividade dos Direitos Humanos como Fator de Desenvolvimento nas Fronteiras Globalizadas do Mercosul. In Revista Jurídica Unicuritiba, vol. 04, n° 53, Curitiba, 2018. pp. 420-447.

SILVEIRA, Vladmir Oliveira da, e; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos Humanos: Conceitos, Significados e Funções. São Paulo: Saraiva, 2010.

 

Rolse de Paula é advogada, fundadora do Projeto COCAJU – Congresso de Orientação de Carreira Jurídica, Diretora da Associação Brasileira de Advogados em Curitiba, Especialista em Direito Aplicado – Escola da Magistratura do Paraná, “Mentoring” para candidatos da Primeira Fase do Exame Unificado da Ordem dos Advogados do Brasil. Também está à frente do RCP Advocacia & Consultoria Jurídica (www.rcpjuridico.adv.br)