Uma nova visão sobre a iniciativa de leis pelo Poder Legislativo Municipal

Kowalsky do Carmo Costa Ribeiro e João Silvestre Pereira de Paiva*

Na teoria tradicional da separação de poderes, consagrada por Montesquieu, caberia ao Poder Legislativo a função de propor leis. Assim, seria natural imaginar que os parlamentares, como representantes do povo, teriam ampla e irrestrita competência para iniciar o processo legislativo, já que a sua atribuição principal é criar leis.

Contudo, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), embora tenha adotado o princípio da separação de Poderes, estabeleceu que determinadas matérias só podem ser propostas por autoridades específicas, criando a chamada iniciativa reservada ou privativa. Assim, embora a função precípua de legislar pertença ao Poder Legislativo, em determinadas matérias, seus membros não podem propor projetos de lei, sob pena de incorrerem em vício de inconstitucionalidade formal.

Sobre a razão de existir a regra da iniciativa privativa, a doutrina de Manoel Gonçalves Ferreira Filho[1] explica: “O aspecto fundamental da iniciativa reservada é garantir ao seu titular a decisão de propor um novo direito em matérias que demandam sua especial atenção ou são de seu interesse preponderante.”

Em outras palavras, a reserva de iniciativa existe para assegurar que matérias de interesse específico (sendo o rol das matérias de iniciativa reservada considerado taxativo pelo STF) sejam tratadas pelo Poder ou autoridade que já detém competência material ou conhecimento prévio sobre o tema. Esse raciocínio, embora possa parecer coeso com a teoria da separação de poderes, garante que cada Poder exerça suas atribuições de forma eficiente e sem interferências indevidas. Na prática, essa lógica acaba engessando o Poder Legislativo em sua função primordial, que é a de criar leis voltadas aos interesses de seus representados, o povo.

A competência legislativa no âmbito municipal 

No que refere aos municípios, a Constituição Federal, em seu art. 30, estabelece que esses entes federados possuem competência legislativa para tratar de assuntos de interesse local, bem como para suplementar a legislação federal e estadual, no que couber.

Nesse contexto, o Poder Legislativo Municipal, por meio de seus representantes eleitos, possui uma competência de iniciativa legislativa bastante limitada, o que pode frustrar o atendimento às demandas da comunidade local.

Essa limitação ampla decorre das diversas restrições impostas aos parlamentares municipais. Embora o art. 30 da Constituição Federal de 1988 trate de forma simplificada a competência dos municípios, limitando-a aos assuntos de interesse local, é essencial que os legisladores municipais observem as demais restrições de iniciativa legislativa previstas na própria Constituição, em razão do princípio da simetria constitucional.

Em termos mais singelos, no âmbito estadual e municipal, as regras do processo legislativo devem replicar os comandos da Constituição Federal, sem variações entre os diferentes entes federados. Essas normas são conhecidas como “normas constitucionais de repetição obrigatória”, corolário do princípio da simetria.

Assim, se a Constituição Federal, no art. 61[2], estabelece que cabe ao presidente da República a iniciativa de leis sobre determinadas matérias, as constituições estaduais devem replicar esse comando, adaptando-o ao chefe do Executivo local.

O embate judicial 

Diante das diversas restrições para a deflagração de projetos de lei é comum que leis de iniciativa parlamentar municipal sejam objeto de ações de inconstitucionalidade[3], movidas pelos prefeitos, sob a alegação de que tais normas invadiram sua competência. Esta tese é frequentemente acolhida pelos tribunais de justiça nas mencionadas ações de representação de inconstitucionalidade de leis municipais.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem adotado, em seus julgados, ponderações que relativizam o entendimento de que os parlamentares não poderiam dispor sobre as políticas públicas, mesmo quando há a alegação de vício de iniciativa por suposta ingerência nas competências do Executivo e a consequente violação ao princípio da separação de poderes.

Um exemplo disso é o leading case ARE 878911, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, que analisou a lei de iniciativa parlamentar dispondo sobre a instalação de câmeras de monitoramento nas escolas municipais e cercanias, com o objetivo de garantir a segurança dos alunos. A tese da ação de inconstitucionalidade tinha sido justamente a de usurpação de competência privativa do Executivo, o STF declarou a lei constitucional.

A tese extraída desse julgamento, que originou o tema 917, é: “Não usurpa competência privativa do Chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos (art. 61, § 1º, II, ‘a’, ‘c’ e ‘e’, da Constituição Federal).”

O caso da Lei nº 10.631/2021 do Município de Goiânia 

Recentemente, a Lei nº 10.631/2021 do Município de Goiânia, de iniciativa parlamentar, que trata de políticas públicas voltadas ao combate à alienação parental, foi alvo de uma ação de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça de Goiás. Essa lei, de extrema relevância, tem como objetivo assegurar, por meio de ações educativas, uma formação psicossocial adequada para crianças e adolescentes, evitando a síndrome da alienação parental.

Este é teor da Lei nº 10.631/2021, do Município de Goiânia, objeto de impugnação no Tribunal goiano:

Art. 1º Ficam instituídas, no município de Goiânia, políticas públicas voltadas para o combate à alienação parental com o objetivo de, nos termos da Lei Federal nº 12.318, de 26 de agosto de 2010, conscientizar a população sobre a importância de se evitar a prática deste ato.

Parágrafo único. Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie o seu genitor, prejudicando o estabelecimento de vínculo com este.

Art. 2º As políticas públicas serão executadas por meio de ações que promovam a realização de encontros, debates, seminários, palestras e demais eventos que propiciem a conscientização sobre a Síndrome da Alienação Parental (SAP).

Parágrafo único. As ações mencionadas no caput deste artigo serão desenvolvidas, em conjunto, pela Secretaria Municipal de Educação e Esporte (SME), Ministério Público e entidades governamentais e não governamentais ligadas à defesa dos direitos da criança e do adolescente.

Art. 3º Caberá à Secretaria Municipal de Educação e Esporte estimular e promover palestras informativas em escolas da rede municipal e particular de ensino, dirigidas aos pais e alunos, a respeito da importância do combate à alienação parental, bem como adotar medidas socioeducativas no âmbito das instituições de ensino, para a sua prevenção e erradicação.

Parágrafo único. As palestras mencionadas no caput deste artigo deverão ser ministradas por psicólogos e profissionais habilitados em psicologia forense.

Art. 4º O Poder Executivo, se necessário, editará normas complementares para a efetiva implantação de ações voltadas para o combate à alienação parental.

Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Pois bem.

Os fundamentos apresentados pelo chefe do Poder Executivo Municipal foram de que a Lei nº 10.631/2021 invadiu sua competência privativa para iniciar projeto de lei que trata da organização administrativa, bem como da estrutura e das competências dos órgãos e entidades da administração, alegando, portanto, vício de inconstitucionalidade formal devido à iniciativa reservada. Especificamente, ao caso em exame, foi argumentado que a referida lei atribuiria novas responsabilidades à Secretaria Municipal de Educação, ao estabelecer que deveriam ser promovidas palestras informativas em escolas da rede municipal, direcionadas a pais e alunos, sobre a importância do combate à alienação parental.

A Câmara Municipal, por meio de sua Procuradoria, refutou as alegações, defendendo a constitucionalidade da norma. Argumentou que não houve a criação de novas atribuições para o município de Goiânia, uma vez que as responsabilidades previstas na lei já são inerentes à Secretaria Municipal de Educação e Esporte de Goiânia. Foi mencionado, ainda, que a formulação de políticas públicas também é de competência do Poder Legislativo, especialmente quando visa dar efetividade a um direito fundamental, como a proteção especial a crianças, adolescentes e jovens, conforme previsto nos art. 227 da CF/88.

O Tribunal de Justiça, por meio de seu órgão especial, adotou um entendimento tradicional e rígido, concluindo que a competência para deflagrar o processo legislativo sobre tal política pública seria próprio do Executivo, o que resultou na declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 10.631/2021.

Entretanto, em sede de Agravo em Recurso Extraordinário, interposto pela Câmara Municipal de Goiânia, a demanda foi submetida ao Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Edson Fachin que, em decisão monocrática, deu provimento ao recurso e reconheceu a constitucionalidade da referida lei municipal.

No trâmite processual perante a Suprema Corte, ainda foram opostos embargos de declaração e, posteriormente, agravo regimental por parte do prefeito, porém ambos foram rejeitados, mantendo-se a declaração de constitucionalidade da Lei nº 10.631/2021.

Podem-se destacar os seguintes trechos dos fundamentos adotados pelo ministro Fachin:

Em realidade, a Câmara Municipal limitou-se a garantir direitos sociais constitucionalmente previstos. A norma, vai, pois, ao encontro dos direitos sociais à segurança, à proteção especial da família e à convivência familiar assegurada às crianças, adolescentes e jovens, previstos nos arts. 6º, 226 e 227, da CRFB.

(…)

A lei objeto desta ação, ao instituir políticas públicas voltadas para o combate à alienação parental, densifica os diversos comandos constitucionais de proteção integral à criança e ao adolescente, ao estabelecer diretrizes para atuação daquele ente federado no tema tratado.

(…)

A lei atacada não impõe qualquer prazo ou parâmetro a órgãos do Executivo, contendo expressamente a previsão de que caberá àquele Poder regulamentá-la. Assim, ao contrário do disposto no acórdão recorrido, não se deu a rigor, ampliação de normas de competência, salvo as que, implicitamente, ante ao reconhecimento constitucional de proteção à família e à infância e juventude, derivam da própria Constituição.

(…)

Nem tampouco qualquer alteração na estrutura ou atribuição dos órgãos do Poder Executivo. A Câmara Municipal atuou em exercício legítimo de sua competência prevista, no art. 30, I, da Constituição Federal, para tratar de interesse local, de forma abstrata e geral em matéria de iniciativa concorrente.

No voto, acolhido por unanimidade pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, ficou evidenciado que a Câmara Municipal de Goiânia atuou dentro de sua competência legislativa.

A norma, ao instituir políticas públicas para o combate à alienação parental, foi considerada plenamente alinhada com os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, como a proteção da família e das crianças e adolescentes (arts. 6º, 226 e 227 da CF).

Também foi destacado que a lei não impôs prazos nem interferiu na estrutura administrativa do Poder Executivo, o que afastou a tese de invasão de competência. 

O destaque para a atuação da Procuradoria da Câmara Municipal de Goiânia 

É importante destacar o empenho e a competência da Procuradoria da Câmara Municipal de Goiânia ao levar essa discussão ao Supremo Tribunal Federal. O acolhimento da tese pela Corte, reconhecendo a constitucionalidade da lei por unanimidade, é de grande relevância para o Poder Legislativo, despontando como protagonista na criação de políticas públicas. 

Conclusão 

Em face da exposição acima, ficou evidenciado que o Poder Legislativo Municipal, por meio de seus membros, pode, sim, ex officio, propor projetos de lei que tratem de políticas públicas, sem que isso necessariamente configure invasão de competência ou afronta ao princípio da separação de poderes, desde que respeitado o âmbito local de sua atuação, já sejam atribuições previamente exercidas pelos órgãos públicos e tratem de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

  • O processo judicial que declarou a constitucionalidade da Lei nº 10.631/2021 pode ser consultado sob o nº ARE 1447546/GO, no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal.

*Kowalsky do Carmo Costa Ribeiro é Procurador-Geral da Câmara Municipal de Goiânia. 

*João Silvestre Pereira de Paiva é Procurador Jurídico Legislativo da Câmara Municipal de Goiânia.

Referências

[1] Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. São Paulo: Saraiva, 2009.

[2] Art. 61.  (…)

  • 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I – fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II – disponham sobre:

  1. a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;
  2. b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;
  3. c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
  4. d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
  5. e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
  6. f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

[3] Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

(…)

  • 2º Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão.