Marco André Carvalho*
A terceirização de mão de obra no setor público sempre foi um tema controverso no Direito do Trabalho. Com o crescente uso desse modelo de contratação, muitas questões surgiram quanto à responsabilidade da Administração Pública sobre os direitos dos trabalhadores terceirizados. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentou essa questão ao julgar o Tema 1118, fixando uma tese que restringe a possibilidade de responsabilização subsidiária do ente público.
De relatoria do Ministro Nunes Marques, o leading case RE 1298647 ou Tema 1118, julgado no dia 13/02/2025, estabeleceu que a Administração Pública só pode ser responsabilizada subsidiariamente pelo inadimplemento de obrigações trabalhistas por parte da empresa terceirizada se ficar comprovada falha na fiscalização do contrato, com a seguinte redação:
Ônus da prova acerca de eventual conduta culposa na fiscalização das obrigações trabalhistas de prestadora de serviços, para fins de responsabilização subsidiária da Administração Pública, em virtude da tese firmada no RE 760.931 (Tema 246).
Isso significa que não basta que o trabalhador terceirizado alegue o não pagamento de salários ou outros direitos; ele precisa demonstrar que o órgão público não cumpriu seu dever de fiscalizar a empresa contratada, e a forma como essa demonstração deve ser feita, segundo o julgado, seria com a uma notificação formal à Administração Pública (vindas de sindicatos, Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego, Defensoria Pública ou dos próprios empregados) alertando sobre atrasos salariais e descumprimento de obrigações trabalhistas e o ente público permanecer inerte. Com isso, restaria configurada a omissão fiscalizatória e consequentemente atrairia a responsabilidade da administração pública.
Essa decisão trouxe um desafio para os trabalhadores terceirizados, pois a prova da falta de fiscalização é extremamente difícil. Os documentos que poderiam demonstrar a existência (ou a ausência) de fiscalização estão sob posse da própria Administração Pública, tornando desigual a relação processual entre o trabalhador e o ente público.
No Direito do Trabalho, o ônus da prova segue a regra geral do artigo 818 da CLT, combinado com o artigo 373 do CPC, ou seja, quem alega um fato deve prová-lo. O empregado, por exemplo, deve comprovar que trabalhou horas extras, enquanto o empregador deve demonstrar o pagamento correto dos salários. No entanto, há situações em que a inversão do ônus da prova pode ocorrer, especialmente quando o trabalhador está em posição de vulnerabilidade e tem dificuldade de produzir provas, como em casos de assédio moral.
A doutrina também conhece o conceito de “prova diabólica” que acontece quando se exige da parte a prova de um fato praticamente impossível ou excessivamente difícil de demonstrar, como, por exemplo, demandar ao empregado que ele prove que não recebeu um valor ou que não cometeu uma falta grave. Nessas situações, os tribunais costumam inverter o ônus da prova, exigindo que o empregador demonstre a veracidade de suas alegações, principalmente porque ele detém documentos e registros que podem comprovar os fatos discutidos no processo. Com respeito ao entendimento do STF ao Tema 1.118 ao qual me curvo, tenho minhas ressalvas, por entender que estabelecer o ônus de para o trabalhador de comprovar a situação de não cumprimento do contrato da prestadora de serviço com a administração pública é um exemplo de “prova diabólica”.
Uma alternativa viável para os advogados trabalhistas que representam trabalhadores terceirizados é a utilização do artigo 400 do Código de Processo Civil (CPC). Esse dispositivo prevê que, se uma das partes possui um documento essencial para a instrução do processo e se recusa a exibi-lo, o juiz pode presumir como verdadeiros os fatos que a parte contrária desejava provar com esse documento.
Art. 400. Ao decidir o pedido, o juiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar se:
I – o requerido não efetuar a exibição nem fizer nenhuma declaração no prazo do art. 398 ;
II – a recusa for havida por ilegítima.
Na prática, o advogado do trabalhador pode abrir um pedido na sua petição inicial solicitar ao juiz, que determine que a Administração Pública apresente comprovantes de recolhimento de FGTS, INSS, além de comprovantes de reajustes salariais conforme o piso da categoria profissional e relatorias de fiscalização do contrato. E caso o órgão público não apresente tais documentos, pedir a aplicação do Artigo 400 do CPC para que o juiz do trabalho considere que a fiscalização não foi realizada de forma adequada, permitindo que se reconheça a responsabilidade do ente.
A decisão do STF está ancorada no princípio da legalidade, previsto no artigo 37 da Constituição Federal, que determina que a Administração Pública somente pode agir nos limites da lei. Por essa razão, a responsabilidade do ente público não pode ser presumida automaticamente pelo simples inadimplemento da empresa contratada, necessitando a demonstração concreta de negligência.
No entanto, ao exigir essa prova do trabalhador, o STF impõe um obstáculo quase intransponível, pois os documentos que comprovam a fiscalização pertencem ao próprio ente público e se o trabalhador for solicitar estes documentos pode vir a sofrer uma represaria da sua empregadora e ser dispensado. Dessa forma, a tática de utilizar o artigo 400 do CPC surge como um meio processual viável para equilibrar essa desigualdade. Ao requerer que a Administração Pública apresente os documentos que demonstrem a regular fiscalização do contrato, o advogado do trabalhador pode forçar o ente público a produzir prova que, se ausente, indicará falha fiscalizatória.
Outra questão relevante é que a fiscalização administrativa não se limita a exigir da contratada meras declarações de cumprimento. A Administração deve comprovar que adotou medidas concretas para garantir que os pagamentos de salários e encargos estavam sendo realizados, fiscalizando efetivamente a gestão do contrato de terceirização. A negligência nessa supervisão caracteriza culpa in vigilando, o que justifica sua responsabilização.
Por fim, a aplicação do artigo 400 do CPC também se mostra um instrumento importante para pressionar a Administração Pública a agir de forma mais rigorosa na fiscalização dos contratos de terceirização. Se a cada novo litígio trabalhista houver a obrigatoriedade de apresentação de documentos e a possibilidade de presunção de culpa em caso de omissão, a tendência é que os órgãos públicos passem a adotar medidas mais efetivas para evitar o inadimplemento por parte das empresas contratadas.
Dessa forma, ainda que o Tema 1118 do STF tenha dificultado a responsabilização da Administração Pública em casos de terceirização, a aplicação estratégica do artigo 400 do CPC pode ser um caminho eficiente para garantir que os direitos dos trabalhadores não fiquem desprotegidos.
*Marco André Carvalho é advogado, sócio do escritório Marques Carvalho Advogados Associados, especializado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, professor de Direito do Trabalho e Processo, coordenador do Núcleo de Direito do Trabalho do Instituto de Estudos Avançados em Direito e juiz do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-GO.