STJ define regras para contratos de locação na recuperação judicial

Tássio Amaral Gomes*

O ingresso de uma empresa em processo de recuperação judicial gera impactos relevantes sobre suas relações contratuais, inclusive os contratos de locação de imóveis. Dentre as muitas controvérsias que surgem nesse cenário, uma se destaca: o deferimento do chamado stay period — prazo de 180 dias previsto no artigo 6º da Lei nº 11.101/2005 — suspende ou não a exigibilidade dos aluguéis que vencem após o pedido de recuperação judicial? A ausência de clareza sobre essa questão tem gerado insegurança jurídica tanto para empresas em dificuldade quanto para os proprietários de imóveis comerciais.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Recurso Especial nº 2.171.089/DF, ofereceu um importante precedente sobre o tema. A Terceira Turma firmou o entendimento de que, em regra, o stay period não suspende a exigibilidade dos aluguéis vencidos após o pedido de recuperação judicial, tampouco impede o prosseguimento da ação de despejo por falta de pagamento desses aluguéis. Com isso, a Corte reafirma que a recuperação judicial não pode servir como escudo para o inadimplemento de obrigações correntes essenciais à manutenção de contratos.

A decisão fundamenta-se em princípios centrais da Lei nº 8.245/91 (Lei do Inquilinato), da Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falências – LREF) e do Código de Processo Civil. A Corte Superior destacou que a ação de despejo por inadimplemento de aluguéis não se enquadra nas hipóteses de suspensão previstas no artigo 6º da LREF, uma vez que o imóvel locado pertence ao locador e não integra o patrimônio da empresa em recuperação. O contrato de locação confere apenas a posse direta, temporária e derivada ao devedor, não sendo atingido pelo objetivo central do stay period, que é impedir a dispersão do patrimônio útil à reestruturação da empresa.

Além disso, o STJ deixou claro que a pretensão do locador de retomar o imóvel não se confunde com medidas que envolvam a retirada ou apreensão de bens de capital essenciais à atividade empresarial, protegidos pelo §3º do artigo 49 da LREF. Para ilustrar essa distinção, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva pontuou, em voto condutor no referido acórdão:

“Tampouco o despejo se encaixa nas exceções previstas no artigo 49, § 3º, da referida lei, que não permite a venda ou retirada do estabelecimento do devedor, no período de suspensão, dos bens de capital essenciais à atividade empresarial pertencentes a credores fiduciários, de arrendamento mercantil e proprietários vendedores. Nesses casos, cabe ao juiz da recuperação judicial definir se o bem é ou não de capital e se é essencial para a continuidade da atividade empresarial, mas a sua competência se restringe ao período de blindagem.”

Essa manifestação é de grande importância, pois reforça que o juízo da recuperação judicial apenas tem competência para decidir sobre a essencialidade de bens de capital durante o período de blindagem previsto na LREF. O contrato de locação, contudo, não confere à recuperanda a propriedade do bem, e o imóvel não se configura, via de regra, como bem de capital nos moldes definidos pela legislação falimentar. Por isso, a ação de despejo deve tramitar no juízo cível, com base na Lei do Inquilinato, sem necessidade de autorização ou intervenção do juízo recuperacional.

Outro ponto fundamental na decisão do STJ é a reafirmação da aplicabilidade do artigo 49, §3º da LREF, que dispõe que os créditos decorrentes de obrigações assumidas pelo devedor durante o processo de recuperação judicial não se sujeitam aos efeitos da recuperação. Os aluguéis vencidos após o pedido de recuperação, portanto, são considerados créditos extraconcursais, plenamente exigíveis, cujo não pagamento autoriza o ajuizamento da ação de despejo.

Embora a regra geral seja a liberdade do locador de buscar a retomada do imóvel em caso de inadimplemento, o STJ reconhece que situações excepcionais podem demandar ponderação, especialmente quando o imóvel locado for essencial à continuidade da atividade empresarial, como no caso de sede administrativa ou estabelecimento comercial que integre diretamente a operação da empresa. Nesses casos, pode haver discussão sobre a essencialidade do bem, mas isso não afasta a exigibilidade dos aluguéis vincendos, servindo apenas como elemento de avaliação judicial pontual.

O STJ também reafirmou a autonomia do procedimento de purgação da mora previsto no artigo 62, inciso II da Lei do Inquilinato, que confere ao locatário o prazo de 15 dias para quitar os débitos e evitar a resolução do contrato. Esse prazo é independente do stay period da LREF, confirmando que o regime da locação continua a produzir efeitos regulares, mesmo durante o processamento da recuperação.

Por fim, a decisão faz alusão à possibilidade de cooperação entre juízos, nos termos do artigo 69 do Código de Processo Civil, especialmente quando houver dúvida sobre a essencialidade do bem locado ou o risco de decisões conflitantes. Essa cooperação entre o juízo cível e o juízo da recuperação contribui para garantir a unidade de decisões, respeitando a competência legal de cada esfera judicial.

O entendimento firmado no Recurso Especial nº 2.171.089/DF traz segurança jurídica ao locador, garantindo que a inadimplência dos aluguéis vincendos durante a recuperação judicial não impede a retomada do imóvel por meio de ação própria. Protege-se, assim, o direito de propriedade, a continuidade dos contratos regidos pela Lei do Inquilinato e evita-se que a recuperação judicial seja desvirtuada como instrumento de suspensão generalizada de obrigações correntes.

Ao conciliar a proteção aos credores com os princípios da preservação da empresa, o STJ oferece uma interpretação equilibrada e tecnicamente coerente com o sistema jurídico brasileiro. A decisão fortalece a previsibilidade das relações locatícias e reforça a importância de uma recuperação judicial séria, transparente e comprometida com o adimplemento de suas obrigações correntes.

*Tássio Amaral Gomes é advogado, especialista em Direito Público Aplicado e Gestão Jurídica. Atua com foco em direito imobiliário, especialmente em contratos, locação, leilões judiciais extrajudiciais, pós-graduando em MBA em Incorporações e Negócios Imobiliários, unindo expertise jurídica e visão de mercado para oferecer soluções seguras e estratégicas no setor.