Gabriel Costa Junqueira*
Em nome da simplificação, a Reforma Tributária aprovada pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025 institui mudanças radicais no sistema de tributação do consumo no Brasil. Embora o discurso oficial a trate como uma revolução positiva, o novo modelo traz mais incertezas do que soluções. A tão prometida racionalização pode acabar trocando a complexidade por instabilidade, e a justiça fiscal por um sistema ainda mais concentrador.
O novo modelo: um IVA “meio brasileiro”
A espinha dorsal da reforma é a substituição de cinco tributos — PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS — por dois: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Ambos seguem, teoricamente, a lógica de um IVA não cumulativo, em que cada empresa paga o imposto apenas sobre o valor que agrega ao produto ou serviço.
A ideia, embora válida em teoria, esbarra em problemas práticos:
- O Brasil não adotou um IVA único e nacional, mas sim um modelo dual, em que União, estados e municípios continuam disputando competências e receitas.
- A convivência de dois IVAs — CBS e IBS — com gestões separadas, alíquotas distintas e critérios potencialmente conflitantes, pode manter a complexidade operacional que a reforma prometia eliminar.
- A multiplicidade de exceções, regimes especiais e alíquotas reduzidas para determinados setores compromete a neutralidade do sistema, gerando distorções e abrindo margem para novos contenciosos.
Na prática, o que se criou foi um novo ambiente de insegurança. O contribuinte continuará lidando com um sistema burocrático, agora com regras inéditas, interpretações incertas e necessidade de adaptação total dos sistemas fiscais, contábeis e operacionais.
A transição que não acaba
Outro problema é o período de transição extremamente longo: a convivência entre os tributos atuais e os novos vai até 2032. Isso significa que, por quase uma década, as empresas terão que operar com dois sistemas tributários paralelos, alimentando duplicidade de obrigações acessórias, controles contábeis distintos, regimes mistos de créditos e interpretações sobrepostas.
Longe de ser uma fase de adaptação suave, esse cenário tende a criar um verdadeiro labirinto jurídico-tributário. Pequenas empresas, especialmente, terão dificuldades para acompanhar as mudanças. E mesmo as grandes precisarão de investimentos pesados em tecnologia e compliance para manterem-se em conformidade.
Split payment: o Estado assumindo o controle do caixa do contribuinte
A adoção do chamado split payment — modelo em que o imposto é automaticamente destacado e transferido ao fisco no momento do pagamento — é vendida como medida de combate à evasão. Mas, na prática, representa um passo perigoso rumo à intervenção estatal nas relações privadas.
Ao retirar do contribuinte a gestão sobre o valor do tributo, o Estado passa a agir como uma espécie de sócio oculto e forçado. Isso compromete a liberdade negocial, complica a gestão de fluxo de caixa das empresas e introduz um nível de controle que poucos países arriscaram adotar.
Além disso, o modelo pressupõe um nível de integração tecnológica entre contribuinte, sistema bancário e fisco que o Brasil ainda não tem plenamente desenvolvido — e cujas falhas poderão resultar em retenções indevidas, erros sistêmicos e nova geração de litígios.
A armadilha do cashback
Outra proposta da reforma é o cashback, mecanismo de devolução parcial de tributos para pessoas de baixa renda. Embora a intenção seja promover maior justiça fiscal, trata-se de uma medida que não está estruturada de forma clara, nem financeiramente garantida.
A aplicação real do cashback dependerá de regulamentações futuras, critérios subjetivos e da capacidade operacional do Estado em cruzar dados financeiros, cadastrais e fiscais com precisão. Mais uma vez, a promessa é grandiosa, mas a execução parece improvável.
E mesmo que funcione parcialmente, o cashback jamais será suficiente para corrigir o principal problema do novo sistema: sua base regressiva. Um IVA, por natureza, incide sobre o consumo, penalizando proporcionalmente mais os mais pobres. Devolver um percentual não elimina a regressividade — apenas tenta suavizá-la, a depender de vontade política futura.
A falsa ideia de neutralidade e a manutenção dos privilégios
Apesar do discurso oficial, o novo modelo não elimina os tratamentos favorecidos, mas apenas os reorganiza. Setores como agronegócio, saúde, educação e transporte terão regimes especiais, com alíquotas reduzidas ou até isenções. Isso contradiz frontalmente o princípio da neutralidade e perpetua a lógica de um sistema desigual, onde grupos com maior poder de pressão política conseguem benefícios às custas dos demais contribuintes.
Essa diferenciação também mina a principal vantagem teórica de um IVA amplo: a uniformidade. Na prática, as distorções continuarão existindo, agora sob uma nova roupagem. O sistema continuará sendo usado como instrumento de política setorial, ao invés de funcionar como um modelo transparente e igualitário.
O Comitê Gestor: concentração de poder e riscos federativos
A gestão do IBS será feita por um Comitê Gestor Nacional, formado por representantes da União, estados e municípios. Essa centralização pode até facilitar a operacionalização do imposto, mas representa um risco de fragilização da autonomia federativa.
A depender da forma como o Comitê atue, pode haver desequilíbrios na distribuição de receitas, decisões políticas travadas por disputas regionais e tentativas de captura por interesses majoritários. Além disso, a composição e os critérios de votação ainda não estão suficientemente claros, o que agrava a insegurança.
O custo real: mais carga tributária?
Um ponto pouco debatido, mas absolutamente relevante, é o potencial aumento disfarçado da carga tributária. O governo promete neutralidade, mas admite que a alíquota de referência poderá chegar a 26,5% somando CBS e IBS — o que tornaria o Brasil um dos países com maior imposto sobre consumo no mundo.
Setores intensivos em serviços, como saúde, educação privada, tecnologia e comunicação, sentirão fortemente esse impacto. E, ao contrário de promessas anteriores, o Simples Nacional não foi absorvido ao novo sistema, mantendo sua complexidade e incentivando a fragmentação artificial de empresas.
Considerações finais: um remendo complexo com nome de solução
A Reforma Tributária de 2025 parte de uma premissa correta: o sistema tributário brasileiro é disfuncional, caótico e litigioso. Mas a resposta oferecida parece mais uma camada adicional de complexidade, sob a aparência de modernização.
Ela não simplifica — apenas troca os problemas antigos por novos. Ela não é neutra — mantém privilégios sob outra forma. E tampouco é justa — amplia a regressividade e transfere poder e controle ao Estado sem as devidas garantias de eficácia e proporcionalidade.
Mais do que nunca, é hora de cautela. O entusiasmo tecnocrático não pode obscurecer os riscos jurídicos, econômicos e sociais de uma reforma feita sob a lógica da pressa e da política. O contribuinte brasileiro merece mais do que promessas de eficiência: merece um sistema justo, transparente e funcional — e não mais uma ilusão travestida de progresso.
*Gabriel Costa Junqueira é advogado tributarista. Atua com consultoria, contencioso e planejamento tributário, com foco na defesa de contribuintes e na análise crítica de reformas fiscais e políticas públicas.