Recuperação judicial: o limite invisível da autonomia privada na arbitragem

Letícia Marina da S. Moura*

A arbitragem é, por essência, um dos mais vigorosos redutos da autonomia privada. Ali, as partes escolhem seus julgadores, desenham as regras do procedimento e, dentro de certos contornos, afastam a jurisdição estatal. Celebra-se, nesse palco, a liberdade dos agentes econômicos de resolverem seus litígios com a eficiência de quem conhece o próprio jogo e a discrição que o mercado exige.

Com o advento da Lei nº 9.307/1996, a arbitragem deixou de ser mera promessa para assumir contornos nítidos e robustos no ordenamento jurídico brasileiro. A partir de então, ergueu-se um regramento próprio, sólido e confiável, que impulsionou seu crescimento — especialmente nos litígios empresariais de alta complexidade, cada vez mais presentes no universo do direito empresarial e na rotina dinâmica das empresas, onde a técnica, a celeridade e a especialização deixaram de ser apenas desejáveis para se tornarem absolutamente indispensáveis.

Todavia, quando a empresa atravessa as portas da recuperação judicial, essa liberdade — até então soberana — encontra um limite tão invisível quanto intransponível: o interesse coletivo dos credores. Em cenário de crise, a vontade individual curva-se diante da necessidade de preservar a função social da empresa e a paridade entre aqueles que dela dependem. A lógica muda: não basta mais ser livre; é preciso atenção às diretrizes que regem a Lei nº 11.101/2005.

Sob esse prisma, o recente julgamento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial nº 2163463 – SP (2024/0300443-0), que anulou parcialmente uma sentença arbitral que havia autorizado a compensação de créditos envolvendo uma empresa em recuperação, recoloca essa tensão entre as duas áreas do direito em foco.

No caso em lide, discutia-se se a compensação entre créditos mútuos poderia ser definida por um tribunal arbitral, mesmo após a homologação do plano de recuperação judicial. A empresa em recuperação judicial sustentou que o juízo arbitral carecia de competência para deliberar sobre a compensação, já que os créditos em disputa estariam submetidos ao crivo do processo concursal.

Pari passu, a parte credora contrária defendeu a plena validade da sentença arbitral, amparando-se no art. 6º, §9º, da Lei nº 11.101/2005[1], que autoriza a continuidade da arbitragem mesmo quando uma das partes atravessa a recuperação judicial.

Ao enfrentar a controvérsia, o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, delineou com precisão três eixos centrais do debate: (i.) os limites da jurisdição arbitral para deliberar sobre a compensação de crédito sujeito à recuperação judicial; (ii.) a eventual violação ao princípio da estabilização da demanda; e
(iii.) a afronta ao concurso de credores e aos termos do plano de recuperação judicial.

Assim, em síntese, ponderou o Relator que “como a compensação constitui meio de adimplemento das obrigações, quando envolver crédito sujeito à recuperação judicial, não pode ser considerada um direito patrimonial disponível, o que afasta a possibilidade de resolução de litígios acerca do tema por meio da arbitragem, diante da falta do requisito da arbitrabilidade objetiva”.

Por sua vez, interpretou que o § 9º do art. 6º da Lei nº 11.101/2005 trata da arbitrabilidade subjetiva, ao estabelecer que a submissão de uma parte à recuperação judicial ou à falência não impede nem suspende a instauração da arbitragem, sem, contudo, tornar arbitrável todo e qualquer litígio que a envolva.

Desse modo, a distinção entre arbitrabilidade objetiva e arbitrabilidade subjetiva é fundamental nos processos de recuperação judicial. A arbitrabilidade objetiva trata do tipo de direito envolvido no litígio: se o direito for patrimonial e disponível, a arbitragem é possível, mas se envolver interesse coletivo, como créditos sujeitos à recuperação judicial, não será. Já a arbitrabilidade subjetiva se refere à condição das partes: a recuperação judicial não impede que uma parte participe da arbitragem, mas isso não garante que qualquer disputa envolvendo essa parte será arbitrável, pois a natureza do litígio ainda deve ser considerada.

A compensação de créditos, por sua vez, está prevista no Título III do Livro I do Código Civil, sendo uma das formas de adimplemento e extinção das obrigações. No entanto, ao envolver créditos sujeitos à recuperação judicial, a compensação passa a estar subordinada ao plano de recuperação e à competência do juízo da recuperação, dado que a matéria, relacionada ao adimplemento de obrigações no contexto do concurso, é inarbitrável.

Logo, a exclusão dessa competência do juízo da recuperação judicial, para decidir sobre a compensação de créditos, abriria espaço para que um juízo de ação individual decidisse de forma unilateral sobre a exclusão de crédito, prejudicando os credores concursais e contrariando o que foi estabelecido no plano de recuperação.

De igual modo, extrai-se a rica lição de Paulo Fernando Campos Salles de Toledo[2], abaixo transcrita:

Observe-se, no entanto, que a arbitragem deverá versar estritamente sobre os direitos de cada uma das partes, à luz do negócio jurídico do qual se originou o conflito, podendo fixar a existência ou não de crédito em favor de uma delas, a eventual presença de fatores modificativos ou extintivos desse crédito, e quantificar seu montante. Não poderá o tribunal arbitral imiscuir-se em questões propriamente concursais, já que isso implicaria invasão da competência exclusiva do juízo recuperacional ou falimentar, e sujeitaria à decisão arbitral os demais credores, não alcançados pela convenção. Assim, por exemplo, pode o tribunal arbitral condenar o devedor a determinado pagamento, mas não poderá definir como será tal crédito classificado no concurso, ou qual a sua ordem de prioridade. De igual forma, o STJ afirmou a competência do juízo arbitral para dirimir controvérsia entre acionistas, em decorrência da previsão, por plano de recuperação, de aumento de capital da devedora – circunstância que, embora decorra do concurso, é externa a ele.

Proferida a decisão arbitral condenatória, será o crédito habilitado no concurso, pois, a teor do artigo 31 da Lei 9.307, de 2006, constitui e título executivo.

Em conclusão, a decisão da 3ª Turma do STJ reforça a limitação da arbitragem no contexto da recuperação judicial. A compensação constitui meio de adimplemento das obrigações e, quando envolver crédito sujeito à recuperação judicial, observado o regime jurídico especial de sujeição do crédito ao processo concursal, não pode ser considerada um direito patrimonial disponível, o que afasta a possibilidade de resolução de litígios acerca do tema por meio da arbitragem.

*Letícia Marina da S. Moura é advogada e jornalista. Especialista em Direito Empresarial e Falência e Recuperação de Empresas. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar da Fundação Arcadas/USP.

Referências

[1] Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: […] § 9º O processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impedindo ou suspendendo a instauração de procedimento arbitral.

[2] Comentários à Lei de Recuperação de Empresas [livro eletrônico] / Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, coordenador. – 1. ed. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.