Agenor Cançado*
A recente denúncia da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) sobre o suposto uso predatório de mandados de segurança por entidades de classe ignora um fato elementar: a Constituição Federal, em seus artigos 5º, inciso XXI, e 8º, inciso III, autoriza expressamente a atuação de associações e entidades sindicais na defesa dos interesses de seus filiados, inclusive por meio de ações coletivas.
Não se trata de uma distorção do sistema judicial, mas de um exercício legítimo e necessário de acesso à justiça, especialmente em um ambiente em que a legislação tributária é propositadamente complexa, ambígua e marcada por interpretações administrativas arbitrárias que obrigam o contribuinte a recorrer ao Judiciário para preservar direitos.
A acusação de “litigância predatória” volta-se contra a parte errada. O verdadeiro cenário predatório é protagonizado pela própria Fazenda Nacional e pela Receita Federal, que insistem em aplicar normas em desconformidade com a jurisprudência dos tribunais superiores e mesmo com os entendimentos firmados no âmbito do CARF, gerando uma enxurrada de discussões judiciais que poderiam ser evitadas com um mínimo de coerência institucional.
A exemplo disso temos a exigência do IRPJ e da CSLL sobre os créditos presumidos de ICMS que ficou definido no âmbito do Tema 1182, mas que a Receita Federal insiste em continuar autuando os contribuintes que excluem esse benefício fiscal estadual da base de cálculo dos tributos federais. Exemplos não faltam.
Além disso, é sintomático que se ignore a prática reiterada da “litigância predatória reversa”: a Fazenda Nacional prolonga artificialmente a exigência de tributos indevidos, mesmo diante de precedentes vinculantes do STF e STJ, forçando o contribuinte a buscar provimento judicial urgente — muitas vezes por meio do mandado de segurança — para afastar cobranças flagrantemente ilegais.
A crítica generalista lançada contra os mandados de segurança coletivos beira a má-fé institucional. A esmagadora maioria das entidades de classe atua com seriedade e legitimidade, representando efetivamente interesses difusos e homogêneos, em conformidade com os princípios constitucionais e processuais. É perigoso e antidemocrático atribuir a essas ações uma suposta finalidade econômica ilícita apenas por confrontarem a arrecadação.
Se há abusos isolados, que sejam apurados e punidos. Mas transformar a exceção em regra é estratégia política para deslegitimar o controle judicial sobre o poder tributante. No Brasil, onde se cobra muito, mal e de forma contraditória, a advocacia coletiva é instrumento de cidadania — não de oportunismo.
Não se pode ignorar que a atuação coletiva, além de constitucional, representa uma racionalização do sistema judicial. Em vez de milhares de ações individuais sobre o mesmo tema, o mandado de segurança coletivo concentra a controvérsia, evita decisões conflitantes e contribui para a uniformização da jurisprudência. Atacar esse instrumento sob o pretexto de combater abusos é, na prática, desestimular o uso eficiente da justiça e favorecer a pulverização da litigância individual, mais custosa para o Judiciário e para os próprios contribuintes.
O que incomoda a Fazenda Nacional não é a forma — é o conteúdo. Quando a via coletiva ganha força, ela rompe a lógica de assimetria entre Estado e contribuinte. Ela empodera economicamente os jurisdicionados, nivela o jogo e impõe limites a um poder tributante que historicamente atuou com ampla margem de discricionariedade, muitas vezes sem prestação de contas nem respeito à legalidade estrita. A crítica à coletivização, portanto, tem menos a ver com litígios abusivos e mais com a dificuldade da administração em aceitar o controle efetivo de sua atuação fiscal.
Não se nega que existam entidades oportunistas, criadas exclusivamente para ajuizar ações em massa com o único objetivo de captar recursos ou promover “pacotes de judicialização” com promessa de resultados automáticos. Mas a resposta institucional não pode ser a desconfiança generalizada, a restrição à via coletiva ou o cerceamento indireto do direito de ação. O remédio adequado está na fiscalização da legitimidade ativa, no controle judicial sobre a pertinência temática e na punição de fraudes específicas — não na deslegitimação do modelo.
A tentativa da Fazenda de inverter o papel de vítima e algoz tem reflexos preocupantes. Ela alimenta uma retórica que criminaliza o exercício da advocacia tributária, especialmente quando voltada à defesa de contribuintes organizados. Advogados passam a ser vistos como “fabricantes de teses”, mesmo quando atuam dentro dos limites legais, com base em fundamentos sólidos, e buscando proteção contra exigências claramente ilegais. Esse discurso institucional corrosivo enfraquece o papel contramajoritário do Judiciário e ameaça o equilíbrio entre os poderes.
Por fim, é fundamental lembrar que o verdadeiro predador do sistema é aquele que, mesmo diante de reiteradas decisões contrárias, insiste em autuar, cobrar e executar valores indevidos, apostando no desgaste do contribuinte e na morosidade judicial. A litigância predatória não está nas ações legítimas movidas contra o Estado, mas sim na resistência do Estado em aceitar que, no Estado de Direito, nem mesmo a arrecadação está acima da Constituição.
*Agenor Camardelli Cançado Neto é a advogado tributarista.