Julyana Guimarães Ramos*
O direito à saúde, sem precedentes nas constituições anteriores, foi consagrado na Constituição de 1988, com previsão no art. 196, cujo o texto destaca como “direito de todos”, “dever do Estado”, regido pelo “acesso universal e igualitário”, dentre outras ponderações. Nesse contexto, com o fito de viabilizar políticas públicas condizentes com o cenário constitucional, criou-se a norma regulamentadora Lei n.°8.080/1990, a qual ornamenta a saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Em suma, o SUS possui três princípios basilares, a saber, universalidade, integralidade e equidade. Nessa conjuntura, tem-se as pessoas autistas, diagnosticadas com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), as quais são consideradas pessoas com deficiência para todos os efeitos legais nos termos da Lei Federal n.°12.764/2012 (Lei Berenice Piana), sendo lhes garantida assistência à saúde sob a máxima abrangência nos liames da norma mencionada.
Dentre os direitos da pessoa autista, destacam-se os previstos nas alíneas “b” e “d” do inciso III do art. 3º da Lei Berenice Piana, ipsis literis:
Art. 3º São direitos da pessoa com transtorno do espectro autista:
[…]
III – o acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades de saúde, incluindo:
[…]
- b) o atendimento multiprofissional;
[…]
- d) os medicamentos;
[…]
Em que pese o direito à saúde dos pacientes com TEA positivado e regulamentado, não é novidade que a realidade fática vivenciada pelos usuários do SUS enfrenta desafios, esses marcados por fila de espera infindáveis, protocolos farmacêuticos limitados e contingente profissional insuficiente frente às demandas massivas.
Como dito, o atendimento integral assegurado no SUS beira o idealismo, uma vez que na prática possui barreiras de acesso dificultando o tratamento adequado das pessoas autistas, visto que muitas vezes as sessões com profissionais multidisciplinares são insuficientes, os tratamentos não utilizam os métodos mais atuais, e em certas municipalidades o atendimento especializado é inexistente, vislumbrando-se uma concretização de direitos precária e uma (in)justiça de acesso à saúde.
Não podemos negar que há um abismo entre a letra da lei e sua eficácia material, tornando o direito à saúde da pessoa com TEA promessa constitucional de conteúdo programático. Neste cenário, são submersos em um sistema formalmente inclusivo, mas exclusos da realidade, com destaque aos hipervulneráveis, que via de regra, possuem o SUS como única forma de acesso aos serviços de saúde.
Ante à precariedade dos serviços prestados pela rede pública e considerando que a saúde exige uma resposta imediata, não há outra alternativa senão a judicialização como via de acesso e garantia concreta do direito à saúde para cessar as ofensas à dignidade humana das pessoas com TEA.
Merece ênfase o fato de que o TEA é “uma condição clinicamente heterogênea a qual envolve uma faixa de comportamentos onde o autismo se insere (…)”, isto é, “O fenótipo autista é muito variável e verificam-se tanto autistas clássicos, com ausência de comunicação verbal e deficiência intelectual grave, como também autistas com habilidades verbais e inteligência normal, mas com sociabilidade comprometida”.
Nesse diapasão, depreende-se que determinar protocolos terapêuticos e padronizá-los aos pacientes com TEA, é limitar de maneira desarrazoada e desproporcional seu acesso à saúde, o que enseja mais uma hipótese de judicialização da demanda, para que cesse tal violação à política nacional de acesso universal, integral e equitativa.
Acerca do tema, os tribunais superiores têm se posicionado de forma favorável. À título de exemplo, ressalta-se a seção de julgamento do RESP 2006118/PE em 16/05/2023, em que a 2ª turma do STJ reconheceu que a União e Estados-membros devem fornecer medicamento à base de Canabidiol para o tratamento de pessoas com TEA e epilepsia.
Assim, vislumbrando que o usuário do SUS com TEA não recebe o tratamento, medicamento ou outra prescrição pelo médico assistente, torna-se imprescindível levar tal necessidade ao conhecimento do Poder Judiciário, acionando-o de modo que o Estado preste os serviços de saúde pleiteados.
Nessa perspectiva, é indispensável o estudo individualizado para que sejam tomadas as providências jurídicas de estilo, com vistas ao direito de prioridade na tramitação processual, pedido de tutela de urgência, impetração de remédio constitucional, dentre outras possibilidades previstas.
Ante o exposto, premente é o papel desempenhado pelas Defensorias Públicas Especializadas em Saúde como garantidoras de direitos relacionados à saúde aos hipossuficientes. Aos demais que enfrentam dificuldades no acesso aos serviços de saúde públicos, é fundamental contatar um advogado de confiança para análise pormenorizada do caso.
*Julyana Guimarães Ramos é pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil, servidora pública da Defensoria Pública do Estado de Goiás, atuante na área de Direito Civil e Direito à Saúde. Associada ao Instituto de Estudos Avançados em Direito e membro dos Núcleos de D. Público e Processual Civil. Pesquisadora ativa em Direito Constitucional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAUJO, J. A. M. R.; VERAS, A. B.; VARELLA, A. A. B. Breves considerações sobre a atenção à pessoa com transtorno do espectro autista na rede pública de saúde. Revista Psicologia e Saúde, v. 11, n. 1, p. 89–98, 1 abr. 2019.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.
BRASIL. LEI Nº 8.080, DE 19 DE SETEMBRO DE 1990.Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8080.htm>.Disponível em:
BRASIL. LEI N°12.764, DE 27 DE DEZEMBRO DE 2012. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm>.
DO VAL, R. O DIREITO À SAÚDE PARA PACIENTES COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA. Unisul de Fato e de Direito: revista jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, v. 11, n. 22, p. 169, 28 abr. 2021
REsp n. 2.006.118/PE, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 16/5/2023, DJe de 22/6/2023.
GILMAR FERREIRA MENDES. Curso de Direito Constitucional – Série Idp -18a edição 2023. [s.l.] Saraiva Educação S.A., 2023.
Julyana Guimarães Ramos é pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil, servidora pública da Defensoria Pública do Estado de Goiás, atuante na área de Direito Civil e Direito à Saúde. Associada ao Instituto de Estudos Avançados em Direito e membro dos Núcleos de D. Público e Processual Civil. Pesquisadora ativa em Direito Constitucional.