Natallya de Freitas Amaral*
A revisão é um procedimento que exerce um papel essencial na garantia e na entrega da qualidade de um texto. Acerca disso, tanto na revisão por terceiros, quanto na autocorreção – “revisão profissional” e a “revisão em ação”, conceitos delineados por Sobral e Barbosa (2019) –, um texto, até ser entregue ao seu público-alvo, passa por numerosas etapas de aperfeiçoamento.
Conforme os autores supracitados, nós, enquanto especialistas da linguagem, revisamos discursos transcritos e materializados em textos, a principal razão pela qual os sujeitos se imbricam em um processo colaborativo:
Revisar um texto vai necessariamente além de todos os componentes da textualidade, os recursos da realização de um discurso, e os incorpora. Revisa-se, assim, não um texto que constitua um todo em si, em imanência, mas sim o discurso de um dado autor, sua enunciação específica em um dado texto, sendo obrigatório para isso considerar as formas “relativamente estáveis de enunciados” (Bakhtin, 2011, p. 262) que são os gêneros do discurso – porque todo texto é parte de algum gênero (Sobral; Barbosa, 2019, p. 21).
Em consonância com os pressupostos de Salgado (2013), o revisor não é o coautor de um texto, mas, sim, um “duplo autoral”, pois, na leitura inicial do trabalho, ele assume a posição de um leitor privilegiado que tem acesso aos escritos originais antes dos demais e, à vista disso, é o principal responsável pela aceitação futura deste exemplar; ademais, é também um especialista da linguagem que “[…] trabalha sobre os textos autorais, não opera como coautor; antes produz um descentramento do texto-primeiro que permite ao autor ser um outro desse outro de si, que faz anotações pontuais, como quem deixa rastros a serem seguidos.” (Salgado, 2013, p. 260).
Nesta visão, para assegurar a legitimidade do novo arranjo textual é esperada a lide criativa por parte do autor, além de uma vigilante e perspicaz leitura do revisor, já que todo texto traz discursos e múltiplas vozes. Todavia, em virtude dos avanços tecnológicos no campo da Inteligência Artificial, especialmente com o advento do ChatGPT, que proporcionam um vasto uso na cadeia da produção textual e de maneira gratuita, emerge a viabilidade de obter revisões textuais em segundos, apenas com alguns comandos triviais. Defronte tais considerações, “estaria o revisor, o ser humano, prestes a ser substituído pelas máquinas?” Reiteradamente, quando novas tecnologias despontam,
afloram muitas inquietações sobre os espaços ocupados por elas no cotidiano. Assim como em tempos decorridos, (o livro físico não foi extinto, ainda que o surgimento do livro digital, Kindle e dos e-books, aparentasse anunciar este fim), isso possivelmente não realizar-se- á. Neste cenário, a pergunta norteadora é: “o ChatGPT substitui, em sua totalidade o trabalho realizado pelo ser humano no tocante à revisão textual?”
Assim, este artigo lança olhares e inquietudes sobre o trabalho de revisão, tanto realizado pela ação do ser humano quanto por meio do uso da Inteligência Artificial, com o intuito de compreender até que ponto essa ferramenta é capaz de entregar um trabalho satisfatório e se, nos dias atuais, dada tal amplitude e disponibilização, poderia chegar a substituir e, até mesmo, dispensar a atuação de um revisor humano.
O revisor de texto
A priori, a função das mensagens é estabelecer a comunicação entre os indivíduos. No que concernem os textos escritos, em casos onde a comunicação não foi estabelecida, isto é, o interlocutor não foi capaz de compreender o que o emissor quis dizer, os objetivos não foram atingidos. Para amenizar tais circunstâncias, o revisor de textos atua como um ponto de apoio para o autor, dirimindo a falta de domínio na Língua Portuguesa.
Este domínio da Língua Portuguesa, por parte dos revisores, precisa sobrepujar os aspectos gramaticais, então deve-se ter familiaridade com as diversas tipologias textuais que exigem a norma culta e as marcas linguísticas apropriadas a cada estilo. Neste contexto, é imperioso salientar que os profissionais do texto necessitam, além de reconhecer as variedades linguísticas, desconstruir o preconceito linguístico no tocante à Língua Portuguesa. Yamazaki (2007) traz:
É importante que os editores conheçam o espectro de usos linguísticos possíveis, assim como o espectro dos estigmas que acompanham esses usos, para que decida, de modo consciente, o que adotar. É essencial compreender a pluralidade linguística, para não eleger suas próprias normas e aplicar suas opções. (Yamazaki, 2007, p. 10)
A revisão textual tem o compromisso com a percepção, clareza, exatidão e o discernimento, consoante Yamazaki (2007), não tem o objetivo singular de corrigir os erros do texto, mas divulgar um trabalho nítido, tornando-o inteligível ao público. Não pormenorizando a correção dos erros do trabalho de revisão textual, mas tomando a consciência de que esta não é somente a finalidade deste profissional, desassociando a ação de eliminar os erros de origem ortográfica ou gramatical de uma conjuntura maior que busca “promover a legibilidade textual ou visual” (idem ibidem). Por isso, um texto gramaticalmente correto ainda precisa da revisão textual.
Coelho Neto (2013) elenca algumas funções do revisor:
- Revisar os originais aprovados para edição por: editoras, gráficas, agências de publicidade, autores, mestrandos, doutorandos, preparadores de originais de quaisquer instituições
- Revisar, se tiver experiência, traduções, cotejando-as com os
- Revisar textos a serem disponibilizados na
- Revisar livros já publicados, objetivando uma edição revista e/ou
- Proceder quantas revisões forem acordadas com o cliente. (Coelho Neto, 2013, 62)
Ainda sobre estas conceituações, Malta (2020) afirma que, para ser um bom revisor, é essencial ter autoridade sobre a Língua Portuguesa e ir além. O revisor de textos precisa estar em constante estudo, aperfeiçoamento, atualização e ter acesso a boas gramáticas, desta maneira, terá afinidade com os textos e domínio pleno das normas gramaticais:
Atualizar-se sempre, isso significa não só estar por dentro de eventuais mudanças na gramática e em acentuação ou ortografia, mas também observar novos usos de palavras já existentes, os neologismos, as palavras que não possuem tradução ou aportuguesamento, novas locuções etc. (Malta, 2000, p. 28)
Para tanto, é indispensável que o profissional da linguagem tenha como hábito a leitura diária, uma vez que a escrita não se desvincula da leitura, é ela quem traz requinte e repertório linguístico. Além disso, a leitura é um instrumento fundamental de trabalho do revisor de texto:
Numa revisão, subentende-se, foram delegados poderes ao seu agente (o revisor), para aprimorar o texto do autor. Aquele é, assim, extensão do autor. Ao mesmo tempo o revisor é leitor – o comum, o exigente, o ingênuo. Cabe- lhe então desenvolver uma forma de leitura em que atue como decisor linguístico, mas na condição de público-alvo, ao mesmo tempo, desenvolvendo ainda a habilidade de verificar não só forma como conteúdo. (Coelho Neto, 2013, p. 94)
Ao comparar o lugar ocupado pelo revisor e o leitor, nota-se que o primeiro (revisor) pode interferir nos textos, enquanto o segundo (leitor) não. Sobre isso, Coelho Neto (2013) aponta:
Daí a necessidade de o revisor trafegar com intimidade e conhecimento de causa pelos conceitos para elaboração de um bom texto, pela sua análise, pelo ato de recorrer a todos os instrumentos que dão suporte a quem quer escrever bem, assim como recorrer a outros que lhe deem subsídios. (Coelho Neto, 2013, p. 95)
Com vistas aos instrumentos que conferem subsídios ao revisor em sua atividade profissional, é imprescindível ressaltar que a pesquisa contínua e a consulta a materiais linguísticos são essenciais para suporte, além de demonstrar compromisso e responsabilidade com a adequação, qualidade e entrega do texto. Alguns exemplos a serem citados são os dicionários conceituados (Aurélio e Houaiss), o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP – lançado pela Academia Brasileira de Letras (ABL)), os manuais de redação e revisão e as gramáticas normativas (como sugestão: “Gramática Normativa da Língua Portuguesa” – Rocha Lima; “Moderna Gramática Portuguesa” – Evanildo Bechara; “Nova Gramática do Português Contemporâneo” – Celso Cunha e Lindley Cintra; Novíssima Gramática da Língua Portuguesa – Domingos Paschoal Cegalla).
O ChatGPT
De acordo com Jaime Simão Sichman (2021), doutor em Engenharia de Computação pelo Institut National Polytechnique – INPG e professor da Escola Politécnica (EP) da Universidade de São Paulo (USP):
ao invés de tentar fornecer uma definição de IA [Inteligência Artificial], mais adequado seria tentar caracterizar quais são os objetivos da área. Uma das primeiras tentativas desta abordagem, proposta em Rich e Knight (1991), é a seguinte: o objetivo da IA é desenvolver sistemas para realizar tarefas que, no momento: (i) são mais bem realizadas por seres humanos que por máquinas, ou (ii) não possuem solução algorítmica viável pela computação convencional (Sichman, 2021, p. 38).
Assim, a Inteligência Artificial é uma ferramenta criada para que as máquinas possam resolver problemas de forma rápida, por meio da coordenação de dados e sem a interferência humana, com o principal objetivo de diminuir os custos dos processos que demandariam muito tempo e investimento se realizados de forma tradicional.
O ChatGPT é um algoritmo apoiado na Inteligência Artificial, lançado em meados de novembro de 2022, projetado em um laboratório de pesquisas em Inteligência Artificial, o OpenAI, nos Estados Unidos, e tem como foco os diálogos virtuais. Segundo o Dicionário Oxford on-line, o termo “chat” significa “forma de comunicação à distância, utilizando computadores ligados à internet, na qual o participante bate-papo”; e GPT é a sigla de “Generative Pre-Trained Transformer”, que, ao traduzir para o português, significa “Transformador Pré-Treinado Generativo”, é uma ferramenta planejada para lidar com textos de forma eficaz, rápida, inteligente e possui uma construção um tanto quanto complexa capaz de selecionar as palavras-chave dentro de um contexto e os significados resultantes da junção de ambos os termos.
Para Fábio Cozman, docente da Escola Politécnica da USP e diretor do Centro de Inteligência Artificial (C4AI), em uma palestra:
Os pesquisadores perceberam que, em vez de usar regras sintáticas para traduções e entendimento de texto, ou seja, usar apenas a linguística, era melhor pegar um monte de frases e calcular a probabilidade da próxima palavra a partir do que tinha sido escrito. É isso o que os modelos de linguagem fazem. O Chat GPT calcula a probabilidade da próxima palavra em função de até 3 mil palavras ditas antes. Para montar um modelo de linguagem, uma gigantesca quantidade de textos, com bilhões de palavras, é selecionada para constituir o que é chamado de corpus. “Estima-se que o corpus da atual versão do Chat GPT contenha 500 bilhões de palavras. O modelo é chamado de generativo, pois gera textos” (Bellesa, 2023).
À vista disso, nota-se a abrangência, pertinência e importância desta ferramenta para a utilização na revisão textual, em decorrência de uma tarefa que geralmente necessita de um longo prazo para ser realizada a depender o material trabalhado, além do custo considerável com a contratação de um revisor qualificado. Por outro lado, reduzir custos e comprometer a qualidade do trabalho a ser entregue não é uma estratégia tão interessante, logo, é preciso cautela e avaliação sobre os agravos e as benesses que são entregues nos resultados das intervenções feitas pela máquina.
Revisão textual e as novas tecnologias: perspectivas e desafios
É costumeiro que os profissionais de qualquer área, ao findar os estudos, reflitam sobre os seus propósitos após a formação acadêmica, cenário semelhante aos revisores de texto. Para Malta (2020), enquanto existirem livros, jornais, revistas, textos de propagandas, dissertações de mestrado, teses de doutoramento, bulas, rótulos, enfim, textos a serem impressos, haverão revisores de texto. Esta perspectiva apontada pelo autor traz entusiasmo e alento para os que ingressam e os egressos nos cursos de bacharelado e licenciatura em Língua Portuguesa e especialização em Revisão de Texto, dado que o mercado da revisão não está em processo de expansão, no entanto, é considerado estável, posto que o mercado editorial é consolidado, as editoras sempre lançam novas edições e livros inéditos, outrossim, não são exclusivamente as editoras que buscam demandas relacionadas à revisão, a área acadêmica também busca esse tipo de serviço.
Há um grande desassossego dos profissionais da linguagem em relação ao surgimento das novas tecnologias e a possibilidade de ocuparem o lugar dos revisores, pois os softwares editores de textos possuem corretores ortográficos. Entretanto, esses corretores realizam apenas correções ortográficas e algumas questões sobre léxico e sintaxe, porém adequações estilísticas, lexicais, correções confiáveis e de reescrita, apenas o revisor textual está capacitado para tal.
No momento presente, em minha atuação como Assessora Técnica Legislativa – revisora de texto na Câmara Municipal de Goiânia, observo que as habilidades linguísticas e de preparação textual já estão intrínsecas ao meu profissional, não obstante, é preciso adquirir, acompanhar e lapidar estas competências atreladas ao meu perfil, por intermédio de cursos que capacitem a editar textos com precisão nos softwares de edição de texto, fazer uso de gramáticas normativas, debruçar sobre os manuais de padronização de textos e reciclar os estudos em língua portuguesa.
Considerações finais
Ainda que o ChatGPT apresente resultados notáveis na intervenção e aprimoramento de textos, sua capacidade não dispensa o olhar humano, especialmente ao lidar com questões mais complexas de natureza discursiva. Esses aspectos pedem uma maior compreensão das nuances linguísticas e da intencionalidade do autor, concretizada no texto. Embora apresente um vasto banco de dados que mostra o acúmulo de saberes técnicos sobre a pontuação e a ortografia, por exemplo, ainda é preciso contar com a habilidade humana para identificar inconsistências semânticas, estruturais, ou ainda problemas na estrutura argumentativa.
É indiscutível que as novas tecnologias são grandes aliadas no trabalho com o texto, no entanto, não substituem o trabalho humano. A sua contribuição é significativa, mas é preciso discernimento para usá-las, pois, não são isentas de erros – a falibilidade é um traço humano que, inevitavelmente, a transpõe para aquilo que cria; as máquinas passam por aprimoramento, na mesma proporção em que os revisores estudam, atualizam, pesquisam, refinam seus olhares e sofisticam as suas produções.
*Natallya de Freitas Amaral é revisora de texto na Câmara Municipal de Goiânia; licenciada em Letras pela Universidade Paulista – UNIP; especialista em Revisão de Texto pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e aluna especial na disciplina “Língua, História e Sujeito” no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística – PPGL na Universidade Federal de Goiás – UFG. E-mail: amaralnatallya@gmail.com
REFERÊNCIAS
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Disponível em: http://www.iea.usp.br/noticias/os-desafios-do-chatgpt-para-a- universidade?searchterm=Chat+GPT. Acesso em 20 out. 2024.
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