O que ninguém contou ao prefeito sobre as guardas municipais

*Bartira Macedo de Miranda

Na Constituição de 1988, a segurança pública foi um assunto de grande preocupação, porém, naquela época, o legislador constituinte não teve força suficiente para fazer grandes alterações na área, tendo em vista que o país estava recém-saído de um regime ditatorial e o processo de democratização não alcançou profundas mudanças de mentalidade, que pudessem provocar mudança de cultura nas instituições.

Embora a questão da segurança permeie vários artigos da Constituição, a segurança pública foi regulamentada apenas no seu Artigo 144, o qual apresenta o rol dos órgãos que exercem as funções da segurança pública, ou seja, a segurança pública continuou sendo deixada nas mãos das polícias. As relações de poder local (frente a um poder central), que permeiam a área da segurança, tornam difíceis qualquer alteração no setor. Já era difícil em 1988, continua sendo difícil em 2022. As guardas municipais, apesar de não estarem previstas entre os órgãos da segurança pública, estão autorizadas pelo artigo 144, § 8º, da Constituição Federal: “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”.

A regulamentação das guardas municipais adveio com a Lei N º 13.022, de 8/08/2014, que criou o Estatuto Geral das Guardas Municipais. Segundo esta lei, as Guardas Municipais são Instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei. E diz ainda que estas têm a função de proteção municipal preventiva, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal. Das disputas que antecederam o advento da Lei, venceu a bancada da bala ao permitir, por lei, que as guardas fossem órgãos armados. Foi a vitória de uma concepção que entende a segurança pública na base do “tiro, porrada e bomba”.

Do ponto de vista da literalidade da Constituição e do seu Estatuto legal, as Guardas foram criadas para a proteção preventiva dos bens, serviços e instalações dos municípios, ressalvadas as competências da União, dos Estados e Distrito Federal.

Porém, nos últimos dez anos, nota-se, no Brasil, um progressivo deslocamento das atividades de proteção do patrimônio público municipal para outras áreas que, constitucionalmente são de competência da Polícia Militar, Polícia Civil e mesmo do Corpo de Bombeiros Militares, todos órgãos dos governos estaduais (e não vinculados hierarquicamente aos municípios). Esse fato, por si só, é sintoma da falta de integração dos entes e órgãos estatais na área da segurança pública. O deslocamento das atividades da Guarda Municipal, no entanto, demonstra não apenas a deficiência dos aparelhos estatais de segurança pública, mas também exterioriza equívocos de sucessivos governos (dos quais, nenhuma legenda político-partidária está isenta, até porque a própria política está submetida às relações reais de poder).

Em relação ao município de Goiânia, é oportuno lembrar que, por volta do ano de 2011, foi criada uma Secretaria Municipal de Defesa Social, extinta em 2012, após um debate sobre a invasão de atribuições da polícia militar e da polícia civil, por parte desta secretaria. Afirmava-se, com apoio na Constituição, que o município não poderia usurpar as funções de segurança pública, que eram de competência destinada ao Estado. Naquela época, começava-se a discutir no país, o papel dos municípios na área da segurança, pois se era certo que a CF colocou a segurança nas mãos das polícias, também era de se reconhecer que a solução do problema vai muito além do papel destinado às polícias e da sua capacidade de atuação (por melhor que seja essa atuação e suas boas intenções).  Posteriormente, o município de Goiânia criou uma Diretoria do Sistema de Defesa Social.

Porém, o papel dos municípios na segurança pública continua em aberto – especialmente no Município de Goiânia.

 O Governo Federal, por sua vez, diante da comoção provocada por crimes de extrema violência, repercutidos pela mídia, se viu demandado a exercer algum protagonismo na área – era preciso fazer alguma coisa. Afinal, a segurança é um problema nacional e era necessário induzir políticas públicas no setor.   No ano de 2001 foi criada a Secretaria Nacional de Segurança Púbica.  Nos anos 2000, o Fundo Nacional de Segurança Pública abriu a possibilidade para que não apenas as Polícias Estaduais, mas também os municípios – que tivessem guarda municipal, pudessem requisitar verbas orçamentárias. É possível que essa medida tenha estimulado a criação de guardas municipais pelo país afora. Esperava-se projetos para a implementação de políticas públicas, mas o que se viu foi o reforço da militarização, compras de armas e viaturas. Embora essa destinação de recursos tenha sido realmente necessária por conta do enorme  sucateamento dos instrumentos de trabalho das polícias, critica-se a visão exclusivista, existente no Brasil, que tem o problema de identificar as questões de segurança apenas como problemas de segurança pública e de polícia, entendendo como solução única, a ampliação do militarismo do armamento, do policiamento ostensivo e viaturas – e tendo como efeito colateral a violência dos órgãos estatais no combate ao crime, criando um ciclo interminável de aumento da violência.

O Governo Federal tentou induzir a necessária integração dos órgãos e estruturas governamentais para que as políticas públicas pudessem existir e chegar a quem precisa: a população – e isso demandaria a atuação dos munícipios. Nesse caminho, as guardas municipais poderiam exercer uma relevante função na implementação de políticas públicas, desempenhando um papel diferenciado, específico e inovador na segurança pública, se assumisse uma postura mais próxima do diálogo com as comunidades locais e articulação institucional. Poderiam, dessa forma, contribuir para a elaboração, implementação e aprimoramento das políticas públicas de segurança, o que seria mais racional e útil, do que querer repetir o erro de ser mais um órgão de repressão e combate.

Alguém poderia, então, contar aos prefeitos, que as guardas municipais devem atuar no campo das políticas públicas de segurança. Se o papel dos municípios é importante e desejável, isso se deve à necessidade de que existam agentes, nos municípios, cuidando das políticas públicas (que envolvem muitas outras questões como educação, trabalho, saúde etc) do que a atuação na repressão e persecução penal (o que já é feito pelas polícias).

Outra coisa que se poderia contar aos prefeitos é que não basta ter uma atuação delineada formalmente, com um discurso declarado em leis e decretos municipais e, na prática, ter uma atuação real em dissonância com esse discurso oficial.

 A concepção equivocada acerca do papel da guarda municipal inibe os avanços que poderiam ser alcançados em prol da efetividade da segurança, como direito e serviço a ser prestado a todos. Se as guardas municipais insistirem no campo da segurança pública “imitando a Polícia Militar”, elas não apenas serão uma “polícia paralela”, mas também atuarão prestando o desserviço de atuarem em conflito com as atribuições da Polícia Militar e Civil, aumentando, assim, a repressão, e negligenciando a prevenção e a integração entre órgãos e entes estatais, tão necessárias à implementação e efetividade das políticas públicas de segurança. Teremos mais um braço armado do Estado, porém com pernas curtas.

*Bartira Macedo de Miranda é professora do Mestrado em Direito e Políticas Públicas da UFG.  Presidente da Comissão de Direito Criminal da OABGO