Camila Correa*
O Direito brasileiro nem sempre apresentou clareza na definição das regras relacionadas à atividade rural. Essa dificuldade pode ser atribuída a diversos fatores, como aspectos históricos ligados à formação da sociedade brasileira e à tradição de informalidade que historicamente marca as atividades desenvolvidas no meio rural.
Atualmente, o produtor rural deixou de ser visto apenas como alguém que trabalha para sua própria subsistência e passou a assumir um perfil mais voltado para os negócios. Isso porque o setor rural se modernizou com a ajuda da tecnologia, e, com isso, os produtores passaram a lidar com questões importantes relacionadas a comercialização de seus produtos.
O agronegócio tem se fortalecido como a principal atividade econômica do Brasil, representando entre 20% e 30% do Produto Interno Bruto (PIB) do país[1]. Além de contribuir para o crescimento da economia, o setor também desempenha um papel estratégico na geração de empregos, no equilíbrio da balança comercial e no fornecimento de alimentos, tanto para o mercado interno quanto para o exterior.
Ocorre que, em razão dos riscos próprios da atividade rural, como as instabilidades climáticas, o aumento no custo dos insumos, a queda nos preços das sacas de grãos ou da arroba do boi e, principalmente, o crescimento das dívidas bancárias decorrente da prorrogação dos contratos, os produtores rurais têm enfrentado uma situação operacional e financeira bastante preocupante.
Em razão desses fatores, a dificuldade em gerar fluxo de caixa suficiente para cobrir os custos da produção, assim como para pagar os elevados juros e as dívidas bancárias, tem exposto os agropecuaristas à incapacidade de cumprir com seus compromissos financeiros, aumentando significativamente o risco de insolvência.
Nesse contexto, a Lei nº 11.101/2005, atualizada pela Lei nº 14.112/2020, passou a prever a equiparação do produtor rural que exerce atividade de produção e comercialização de bens ao empresário urbano. Com isso, o produtor rural passou a receber o mesmo tratamento jurídico e a se submeter às mesmas normas legais aplicáveis aos demais empresários.
Isso significa que, uma vez registrado na Junta Comercial, se sujeitará à insolvência empresarial (falência), bem como poderá se beneficiar do instituto da Recuperação Judicial ou Extrajudicial, considerando que por explorar uma atividade produtiva, esta merece ser preservada e recuperada sempre que possível[2].
À vista do pedido de recuperação judicial e da decisão que autoriza o início do processo, iniciam-se os efeitos do chamado “stay period”, também conhecido como período de blindagem. Trata-se de um prazo de 180 dias, que pode ser prorrogado uma única vez, durante o qual a empresa fica protegida, tendo como objetivo garantir um ambiente mais estável para que a empresa possa negociar suas dívidas e buscar uma solução para reorganizar sua situação financeira.
É sabido que, diante da notícia de um pedido de recuperação judicial, não é raro que se instale uma verdadeira corrida entre os credores, cada um buscando receber o máximo possível de seu crédito[3]. Essa disputa desenfreada, no entanto, tende a comprometer gravemente a continuidade das atividades empresariais, muitas vezes resultando no perecimento dos ativos operacionais da companhia, o que acaba por prejudicar não apenas os credores, mas a economia como um todo.
Portanto, o stay period, que decorrente diretamente do princípio da preservação da empresa, tem como finalidade evitar a referida corrida desordenada dos credores e proporcionar ao devedor uma oportunidade concreta de soerguimento. Trata-se de um período essencial para que a empresa possa manter suas atividades operacionais e fortalecer seu fluxo de caixa, de modo a viabilizar o cumprimento das obrigações nos termos do plano de recuperação judicial.
Corroborando com essa premissa, o doutrinador Marcelo Barbosa Sacramone disciplina:
“Referida suspensão é motivada pela tentativa da lei de criar, com a recuperação judicial, um ambiente institucional para a negociação entre credores e o devedor. A suspensão das ações e execuções impede que credores individuais retirem bens imprescindíveis à reestruturação da atividade, o que assegura ao devedor a possibilidade de estabelecer no plano de recuperação meios para sanar a crise econômico-financeira pela qual passa.”[4]
No âmbito do empresário rural, é fundamental a disponibilidade de ativos financeiros para viabilizar o custeio do cultivo e da colheita da safra, bem como para assegurar o manejo adequado do rebanho. Diante dessa necessidade, é comum que os produtores recorram a financiamentos bancários específicos para o custeio de suas atividades. Contudo, a inadimplência nesses contratos pode ensejar a propositura de ações judiciais e execuções, resultando na penhora de ativos financeiros e bens essenciais ao funcionamento da atividade rural, o que compromete diretamente a continuidade da produção e a sustentabilidade do negócio.
Além disso, é comum que, para a aquisição de maquinários e equipamentos indispensáveis à atividade produtiva, o empresário rural celebre contratos de financiamento com garantia real, vinculando os próprios bens adquiridos. Em caso de inadimplemento, tais contratos podem ensejar ações de busca e apreensão por parte dos credores. No entanto, durante o período de blindagem legal, se esses bens forem considerados essenciais à manutenção das atividades do devedor, poderá ser autorizada sua permanência na posse do devedor até o esgotamento do prazo legal, como forma de preservar a continuidade da exploração da atividade econômica e viabilizar a efetiva recuperação da empresa.
Durante o stay period intervalo, o produtor continua exercendo suas atividades, preservando a produção e a comercialização, ao mesmo tempo em que ganha tempo para negociar com credores e buscar acordos que permitam a continuidade de seu negócio. Portanto, sem o stay period, muitos produtores poderiam ser forçados a interromper suas operações de forma repentina, comprometendo não apenas sua própria subsistência, mas também o abastecimento de alimentos e o equilíbrio do setor agropecuário como um todo.
Assim, a preservação da atividade rural não beneficia apenas o produtor individualmente. Ao permitir que o produtor se recupere e evite a falência, o mecanismo contribui para a manutenção de empregos no campo, a continuidade do abastecimento alimentar e a estabilidade da cadeia produtiva do agronegócio.
*Camila Correa é advogada especialista em reestruturação financeira do produtor rural, da banca João Domingos Advogados.
[1] https://cepea.esalq.usp.br/br/opiniao-cepea/afinal-quanto-o-agronegocio-representa-no-pib-brasileiro.aspx
[2] Pimenta, Eduardo Goulart; BASTOS, Luciana Castro. A empresa rural no Código Civil de 2022: uma análise a partir de sua função social e econômica. Revista Em Tempo, v.15, p.219-231, 2016.
[3] STJ – CC: 168000 AL 2019/0258774-0, Relator.: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 11/12/2019, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 16/12/2019.
[4] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 5ª Ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024. Pág. 46.