O que é o Direito Eclesiástico?

Edson de Brito Leite* 

O Direito Eclesiástico enquanto estudo do direito que afeta às religiões, organizações religiosas e seus correligionários, é um tema específico, contudo, não se pode ser simplista ao ponto de pelo fato de ser específico o mesmo não se revele como um universo de ramificações que afetam as relações sociais.

O Direito Eclesiástico tem características de direito público e privado, sendo assim, um ramo de estudo híbrido, podendo inclusive ser subdivido em Direito Eclesiástico Público (afeto as organizações religiosas e o estado), e Direito Eclesiástico Privado (afeto as relações entre os particulares e as instituições religiosas).

O ser humano enquanto persona possui suas subjetividades, sobretudo, quanto a manifestação da fé. Sendo assim, muitos direitos potestativos surgem quando são pertinentes a cada indivíduo em sua esfera de foro íntimo.

O Direito Eclesiástico de manifesta em meio à sociedade organizada, e o alcance de suas nuances pode ser exemplificado, vejamos: Imagine uma família composta por trinta integrantes, dentre pai, mãe, filhos, tios, avós etc. Contudo, por vezes apenas um desses componentes está ligado a alguma atividade religiosa, seja por fé, ou por trabalho etc. Sendo assim, muitas vezes aquele assunto que seria restrito àquele membro da família, se torna importante para toda a família.

A relação do estado com a igreja sempre é assunto a ser estudado, uma vez que tudo que detém poder deve ser analisado sobre o prisma dos impactos a serem gerados na sociedade. Inclusive diz-se que igreja e política não se misturam, contudo, tanto o governo de um país, estado, cidade, província, bairro, detém poder tanto quanto um sacerdote, um líder, etc. Considerando o poder de influência e não o poder de polícia que pertence no caso do Brasil, somente ao ente Estatal.

Falando de Brasil, temos que o Estado Constitucional de 1988 foi herdeiro de muitas das concepções históricas sobre as relações entre a Igreja e o Estado: a evolução constitucional do conceito, limites e expressões da liberdade religiosa está entre os aspectos menos estudados do constitucionalismo brasileiro, porém, mais influentes na vida quotidiana dos cidadãos.

O efeito da liberdade religiosa na República brasileira é a sua parcial privatização, parcial, porque enquanto as garantias constitucionais em si (a liberdade religiosa individual, a liberdade dos cultos, a liberdade associativa coletiva religiosa superior à liberdade associativa ordinária) são eminentemente públicas, a prática religiosa em si é sempre privada. Ela não é privada no direito a seu exercício – que é público, mas nas formas de manifestação dessa liberdade, tanto do indivíduo quanto de coletividades de cidadãos associados para um fim religioso, as organizações religiosas.

O Direito Eclesiástico do Estado tem por objeto a projeção civil do fenômeno religioso. Não se trata, pois, de um direito religioso estatal, pois o Estado aconfessional (ou não-confessional) não exerce qualquer função ativa frente às manifestações religiosas, mas tem competência para intermediar conflitos quando tais manifestações ocasionam relações jurídicas próprias da vida privada.

No Direito Comparado, o estudo e o desenvolvimento do Direito Eclesiástico do Estado é intenso, especialmente na Espanha e na Itália. O modelo espanhol é de grande interesse, apesar de apresentar várias características dissonantes do constitucionalismo brasileiro. De forte interesse para o estudo da autonomia privada e governo interno das igrejas são as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, assim como uma análise relativamente detalhada da realidade efetivamente laica da República Francesa.

O direito positivo à liberdade religiosa é, primeiramente, um direito pessoal, isto é, um direito pertinente a cada indivíduo na sua órbita pessoal de direitos subjetivos, direitos perante os demais (erga omnes) e direito perante o Estado – e não apenas perante o Estado de que é súdito ou cidadão (não é um direito meramente de cidadania, mas um direito que pertence ao homem enquanto ser humano). No entanto, é certo que a liberdade religiosa não é exercida apenas individualmente, pelo contrário, todas as confissões têm caráter coletivo, mesmo que algumas de suas práticas sejam eminentemente individuais.

Desde o momento da superação da visão estritamente individualista das liberdades fundamentais, deu-se a extensão do direito aos grupos religiosos, ou, como prefere o Direito Civil brasileiro, das organizações religiosas – que não são quaisquer grupos religiosos, mas aqueles que representam, com algum teor de institucionalidade, o sentimento religioso dos cidadãos. A questão da liberdade religiosa encontra problemas quando a religião professada pelo indivíduo passa pela condição de ele ter que tentar convencer as pessoas de que a sua religião é a correta ou vice-versa. Temos aí o chamado fenômeno confessional. E aí se discute até que limite um indivíduo pode abordar outro no sentido do debate religioso, sem chegar a ferir outros direitos legais como a proibição do constrangimento ilegal, liberdade de expressão etc.

A construção do Direito Internacional dos Direitos Humanos foi tardia, já que historicamente as intervenções de países ou organizações multilaterais no direito interno de cada Estado-nação era considerado uma ingerência grave e inadmissível, situação alterada significativamente após os terríveis eventos – com graves implicações para a liberdade religiosa individual e coletiva ocorridos no período entreguerras e especialmente durante a Segunda Guerra Mundial. A criação de organismos supranacionais e, especialmente, os compromissos internacionais firmados por diferentes Estados para a promoção e a proteção de direitos humanos fundamentais propiciaram a criação de uma rede global comum de defesa da liberdade religiosa – no entanto, em quase todos os casos incluída entre os documentos gerais de proteção dos direitos fundamentais individuais, sob a égide de valores teoricamente universais. A religião é citada no próprio documento fundador da Organização das Nações Unidas, a Carta das Nações Unidas (ou Carta de San Francisco, 1945), que atesta que uma das metas do órgão é o ―respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais de todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.

A Assembleia Geral das Nações Unidas que aprova, em 10 de dezembro de 1948, o texto fundamental do Direito Humanitário, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo artigo 18 define: Todos têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

Conforme exposto alhures, os registros de direitos eclesiásticos positivados no ordenamento jurídico mundial parece não prever dentre o rol – o direito a tentar convencer alguém a mudar de religião – pelo contrário, parece proteger aqueles que queiram ficar – até mesmo na inércia. Assunto que deve ser debatido e estudado para evoluir em conceitos, uma vez que atualmente vemos uma verdadeira guerra de “quem fala mais alto” nos lugares públicos, infelizmente. Se chega um Pastor Evangélico, logo, logo chega um pregador Católico Romano, e um adepto da Umbanda, do Espiritismo, da Seicho-no-ie e assim por diante. A tentativa da solução por meio do ecumenismo parece não mais surtir efeitos práticos, uma vez que, muitas instituições, independente da religião, não são adeptas à abertura para o ecumenismo, pois, ainda não está esclarecido o limite que o ecumenismo deve guardar para preservar a característica dos dogmas e doutrinas de cada religião. Pois, uma manifestação ecumênica de líderes religiosos enquanto seres humanos, com o intuito de reverberar alguma causa humanitária é um contexto, outra situação totalmente diferente é a prática de uma cerimônia ecumênica com características próprias de “culto ecumênico”. De fato, é incongruente fazer um culto cristão evangélico ao mesmo tempo que um culto de origem pagã, como por exemplo o culto aos mortos da religião celta, dos povos incas, astecas, hoje mais concentrada no México. Não obstante a concepção do – fomentar o que nos une e afastar o que nos separa – tenha sido a tônica nas últimas décadas de muitos líderes a priori com intuito de apaziguadores, pesa no sentido de que tais manifestações dadas em aparições midiáticas, dão pelo menos uma sensação de tom irônico do que unidade. Não há como unir o que não é uno, como a ciência explica que água e óleo não se misturam, logo, o conflito passa a existir. Daí falarmos nos limites da liberdade religiosa seria também garantir aos que rejeitam o ecumenismo a garantia de que não são obrigados a modificarem os princípios de sua fé, culto e prática para agradar a pauta do ecumenismo, que na prática cria uma mesclagem de ritos.

Quando citamos – mesclagem – logo saímos da linha tênue que separa a prática do ecumenismo do ecletismo. No Brasil, uma organização que tem essa característica é a Fraternidade Universal com sede na cidade de Santo Antônio do Descoberto, conhecida como Cidade Eclética.

Atualmente, quaisquer tipos de organização religiosa têm tomado ainda que informalmente o uso da insígnia – Igreja – contudo, tal termo só deveria ser utilizado para as instituições que assim se denominam formalmente. E aliás, não consigo trazer aqui a data de tal proibição, mas somente a Igreja Apostólica Romana detinha essa prerrogativa até algumas décadas atrás.

Muitas religiões não adeptas dessa nomenclatura, querem ter os mesmos direitos das chamadas e denominadas Igrejas. Por exemplo: não se houve dizer da ‘igreja da umbanda’, ‘igreja espírita’ – as nomenclaturas dessas vertentes religiosas não possuem essa característica, sobretudo, porque a ideia de Igreja é indissociável do Cristianismo. Pois, até mesmo os Judeus ortodoxos não se utilizam desse nome para designar suas agremiações e reuniões, as nomeando, pois, como sinagogas, e os adeptos do islamismo, mesquitas etc. Apenas para fins de curiosidade, nos Estados Unidos existe a Igreja do Satanismo.

O legislador infraconstitucional brasileiro reconheceu o direito das confissões religiosas ao dispor em alteração feita ao novo Código Civil (Lei n. 10.406/2002) por meio da Lei n. 10.825/2003, que a nova redação do primeiro parágrafo do artigo 44 do Estatuto Civil, seria: § 1o São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.

É verdade que a igreja católica apostólica romana é quem deteve por centenas de anos o status de única organização que podia usar essa nomenclatura ‘Igreja’ e, também traz toda a referência acadêmica baseada em sua evolução e involução enquanto organização religiosa. Um aspecto significativo do estudo do Direito Público Eclesiástico durante o período imperial referia-se às pessoas jurídicas que compunham a Igreja oficial e a titularidade de seus bens. A Igreja oficial não era como tampouco é a Igreja Católica hoje, uma única pessoa jurídica, mas pelo menos três tipos diversos, todos de Direito Público, quais sejam: as Mitras diocesanas ou episcopais; as Fábricas paroquiais; e as Ordens Religiosas.

As fábricas eram as pessoas jurídicas com capacidade de direito sobre os bens de uma paróquia, administradas por representantes nomeados pelos bispos denominados fabriqueiros, cuja função não era compatível com o encargo eclesiástico do pároco; no âmbito diocesano, as pessoas jurídicas com capacidade patrimonial eram as Mitras, administradas e representadas por um ecônomo, igualmente nomeado pelo bispo. No entanto, o direito de tais pessoas jurídicas de natureza religiosa adquirir bens era extremamente limitado pela legislação comum, que incluía Igrejas, Ordens Religiosas, Confrarias, Irmandades, Misericórdias no conceito de corporações de mão-morta, sobre as quais, entre outras limitações, incidia a proibição de adquirir ou possuir bens de raiz sem especial concessão do Corpo Legislativo. Assunto deveras importante está sendo discutido se há mesmo a necessidade de se exigir do sacerdote católico, in casu, Padres – o celibato, mais conhecido como voto de castidade. Ou seja, porque não liberar o casamento para os que quiserem se casar, passando assim, a ser facultativo o voto de celibato? Desde a Constituição de 1891, o Brasil fez questão de romper o vínculo do governo republicano com a igreja católica romana. Apesar do Código Civil de 2002 ter modernizado e atualizado também a temática do Direito Eclesiástico no Brasil, contudo, ele não alterou ou revogou disposições do Decreto 119-A de 1890, precursor da primeira constituição brasileira republicana, em 1891, pois, as anteriores, sob o regime do Império mantinham a ligação com o poder da igreja católica. Algo a se registrar é que apesar de toda a atualização e modernização dos dispositivos, guardadas as ligações que já demonstramos alhures, as organizações religiosas, por nem sempre serem no formato ‘igreja’, são associações, e ganharam sob o prisma do direito positivado atual, um caráter de instituições sui generis pois, ora tem caráter jurídico, ora tem caráter privado, ora tem caráter público e ora tem caráter de fé.

O intuito aqui não é esgotar, mas tão somente dar a largada no caminho da cognição desse ramo do direito, logo, encerro por aqui o que entendi ser suficiente para responder à pergunta proposta: o que é o Direito Eclesiástico?

*Edson de Brito Leite é advogado, mestre em Direito Eclesiástico.