O emprego da tortura e a atuação do Judiciário na homologação da prisão em flagrante

Gabriel Fonseca*

Recentemente, deparamos-nos com a prisão em flagrante de um homem negro que foi preso, amarrado e arrastado por policiais em São Paulo. A forma que foi carregado, remete à maneira que normalmente são feitas com animais em momento de abate. Infelizmente fatos parecidos e episódios de tortura em momentos de prisão em flagrante não são raros em nosso país.

Nesse caso específico, o homem era suspeito de participar de um “arrastão” em um mercado paulista. Os policiais o levaram para a delegacia competente, onde o flagrante foi lavrado e, posteriormente, a Juíza responsável pelo caso homologou a situação, entendendo que NÃO HOUVE TORTURA. Manifestou, ainda, que a prisão deve ser convertida em preventiva pelo fato de que “o homem cumpria pena em regime aberto, não exercia labor lícito e há o risco de voltar a delinquir”.

Curiosamente, a ouvidoria da PM de São Paulo repreendeu a situação, alegando que houve claro caso de tortura, abuso e maus-tratos. Afastaram os seis policiais responsáveis pela abordagem e estão investigando o ocorrido.

Esse fato nos leva a vários questionamentos, dentre eles os mais significativos: 1. Se não tivessem filmado o ato, os policiais poderiam ser responsabilizados? Acreditariam na palavra do preso?. Qual o limite do Poder Judiciário em definir ou não a ilegalidade prisional, visto que, mesmo sendo claro o emprego de tortura, a juíza afirmou não ter? 3. Porque não vemos abordagens assim quando se tratam de situações flagranciais com pessoas de alto poder aquisitivo e brancas?

Primeiramente, devemos rememorar o conceito legal de tortura, abordado pela lei 9.455/97, que versa o seguinte:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

  1. a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
  2. b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
  3. c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena – reclusão, de dois a oito anos.

  • 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
  • 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
  • 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
  • 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

I – se o crime é cometido por agente público;

II – se o crime é cometido contra criança, gestante, deficiente e adolescente;

II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;             ‘(Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)

III – se o crime é cometido mediante sequestro.

  • 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.
  • 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia
  • 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.

É muito nítido o cometimento de tortura por parte dos policiais no caso em referência. Mesmo sendo evidente, por que a juíza responsável não aplicou a lei e reconheceu a tortura contra o preso?

Infelizmente, muitos de nossos agentes públicos não reconhecem que devem exercer suas funções com base estritamente por aquilo que nossas leis prescrevem. Entendem que o seu entendimento do que é a “justiça” deve prevalecer e, assim, tomam decisões, ações e omissões arbitrárias.

Fato é que a lei também restringe a atuação judiciária, principalmente ao analisarmos esse tipo de conduta como um ato de abuso de autoridade. Senão vejamos o que dispõe a lei 13.869/19:

Considera-se abuso de autoridade o ato de:

Art. 9º  Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:

I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;

II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível;

III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.

Vemos que não só a prisão da vítima de tortura deve ser relaxada, mas também, a juíza que atua no caso deve responder por abuso de autoridade, uma vez que tinha a obrigação de reconhecer a ilegalidade perpetrada e relaxar a prisão.

Fatos como esse devem ser devidamente apurados e punidos dentro das conformidades legais para que possamos, cada vez mais, demonstrar à sociedade e aos agentes públicos que o que prepondera não é a convicção de “justiça” de cada um, mas sim, que a lei deve ser respeitada e colocada em prática, independentemente de concordância ou discordância do que prescreve.

Quanto à questão de vermos episódios como esse apenas com negros e pobres, deixo para a concepção e consciência dos colegas leitores. Porque isso virou costumaz em nossa sociedade e o que podemos fazer para abolir esse cenário? Refletir é nosso primeiro passo, mas não suficiente.

*Gabriel Fonseca é graduado pelo Centro Universitário de Anápolis (GO). Com especialização em Direito Penal, Processo Penal, Direito Penal Tributário, Criminologia e Ciências Criminais. Atua na área criminal em todo Brasil, com escritórios em Anápolis, Goiânia e Brasília (DF).