O crime de racismo e a seletividade do STJ ao afastar a injúria racial contra pessoa branca

Marcelo Bareato*

A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de afastar a injúria racial contra pessoa branca levantou importantes questionamentos sobre a seletividade na aplicação do Direito Penal no Brasil. Esse posicionamento gera preocupações quanto à interpretação da norma jurídica e sua conformidade com os princípios constitucionais de igualdade e isonomia.

Nesse contexto, com vistas a evolução legislativa e diferenças entre racismo e injúria racial, é importante observar que ambos são institutos distintos. O racismo consiste na prática de condutas discriminatórias que visam inferiorizar um grupo racial ou étnico, resultando na negação de direitos. Já a injúria racial ocorre quando ofensas são dirigidas à dignidade de um indivíduo com base em sua raça, cor, etnia, religião ou origem.

A diferença essencial entre eles reside na extensão das condutas: enquanto o racismo é um crime mais amplo, com impacto coletivo, a injúria racial tem um caráter mais individualizado, atingindo a dignidade da vítima. No entanto, ambos contribuem para a perpetuação do preconceito e da discriminação racial na sociedade.

Dito isso, em 4 de fevereiro de 2025, a Sexta Turma do STJ, ao analisar a Ação Constitutiva de Habeas Corpus nº 929002, originada no Estado de Alagoas, afastou a caracterização da injúria racial contra pessoa branca. A Corte justificou sua decisão com base na ideia de que a legislação protege grupos historicamente discriminados, conforme diretrizes do Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Tal entendimento gerou grande repercussão e debates acadêmicos, pois sugere que determinadas condutas ofensivas dirigidas a indivíduos brancos não seriam passíveis de punição sob a tipificação penal da injúria racial. Isso levanta questionamentos sobre a isonomia na aplicação da lei e a necessidade de um critério objetivo na interpretação dos tipos penais.

Destarte, analisando o Código Penal, em seu art. 140, § 3º, é possível verificar que a legislação prevê a ocorrência da injúria racial quando há ofensa à dignidade ou ao decoro de alguém em função de sua raça, cor, etnia, religião ou origem. A redação do dispositivo não estabelece distinção quanto à raça da vítima, tornando sua aplicação universal.

Nesse passo, conforme Guilherme de Souza Nucci, “se racismo é mentalidade segregacionista, não há dúvida de que se deve proteger todos os agrupamentos sociais, independentemente de padrão físico ou ascendência comum” (Curso de Direito Penal, vol. 2, 2024, p. 242). Isso reforça a ideia de que qualquer pessoa pode ser vítima de injúria racial, desde que haja dolo na conduta do agente.

A seletividade do STJ na interpretação da norma penal, ao restringir a proteção legal apenas a grupos historicamente discriminados, compromete o princípio da igualdade (art. 5º, CF/88), que garante tratamento isonômico a todos os cidadãos. A hermenêutica jurídica não pode distorcer o sentido da norma para criar distinções não previstas pelo legislador, do contrário, estaríamos concedendo ao judiciário a função de legislar.

A decisão do STJ pode abrir precedentes preocupantes para a seletividade na aplicação do Direito Penal. Se a injúria racial for relativizada com base na raça da vítima, há o risco de enfraquecimento das garantias jurídicas e da coerência na persecução penal.

A igualdade perante a lei deve ser assegurada de maneira plena, sem distinções arbitrárias. A proteção contra ofensas raciais não pode ser limitada a determinados grupos, pois isso configuraria uma hierarquização das vítimas, em detrimento do próprio princípio de não discriminação.

Nosso artigo de hoje tem a preocupação de chamar a atenção do leitor para a irremediável necessidade de forçarmos o Poder Judiciário a reavaliar sua interpretação sobre a injúria racial, garantindo que sua aplicação seja coerente com os princípios constitucionais e com a função protetiva do Direito Penal. Uma abordagem equitativa, sem seletividade, é essencial para fortalecer a credibilidade do sistema de justiça e afiançar a efetiva proteção de todas as vítimas de discriminação racial, dando aos cidadãos a segurança jurídica que possibilita uma cultura de conhecimento de direitos e exigência da efetiva aplicação da norma posta.

*Marcelo Bareato é doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial, Direito Internacional Público, Relações Humanas, Criminologia e Execução Penal na PUC/GO e na EBPÓS – Escola Brasileira de Pós Graduação, Conferencista, Parecerista, Advogado Criminalista, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Vice Presidente da ABRACRIM/GO – Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Seccional Goiás, Membro da Comissão de Direitos Humanos da Seccional OAB/GO, Membro da Coordenação de Política Penitenciária da OAB/Nacional, Membro do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura/GO, Coordenador da Comissão Intersetorial de Acompanhamento da Saúde no Sistema Prisional/GO, Membro do FOCCO – Fórum Permanente de Combate à Corrupção do Estado de Goiás, Membro da ABA – Associação Brasileira dos Advogados, Membro da AASP – Associação dos Advogados do Estado de São Paulo/SP, Membro do IBCcrim – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Membro do Instituto Ibero-americano de Compliance, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).