Edemundo Dias de Oliveira Filho*
No dia 30 de outubro deste ano, o que era para ser uma simples audiência em face de determinada ação penal na Comarca de Barra do Garças/MT, transformou-se em uma aberração em múltiplos sentidos, com grande repercussão nas mídias nacionais, pois merece zelosa reflexão não só do mundo jurídico, mas da sociedade como um todo.
Nessa rumorosa audiência, a promotora de Justiça Clarissa Cubis de Lima Canan, quando travava um caloroso debate com dois advogados goianos, Jefferson Adriano Junior e Letícia David Moura, verbalizou acusações de extrema gravidade, ao atribuir-lhes a conduta de seguir “o código da bandidagem”. Tal acusação, aos gritos e de forma leviana, foi prontamente rebatida pelos causídicos com a devida veemência: “Isso é um absurdo! A senhora nunca nem me viu na vida e [vem] falar uma coisa dessa – código de bandidagem? […] A senhora atingiu a defesa de forma direta”.
Este é o primeiro ponto a ser destacado aqui. Todos devem saber, especialmente as autoridades constituídas, que o advogado não exerce o seu sacerdócio para agradar os detentores do poder. Pelo contrário, devem contrastá-los com ousadia, sempre que o direito e a justiça são ofendidos. Foi por isso que Sobral Pinto, quando enfrentou a ditadura civil-militar no período mais crítico da história, vaticinou: “A advocacia não é profissão para covardes”. Ademais, em todas as nações livres, no Estado Democrático de Direito, a instituição “advogado” e a instituição “defesa” estão amalgamadas como um mister sagrado. No Brasil a Constituição da República assegura que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei” (Art. 133).
Sobreleva e causa espécie afirmar que casos como este, e até mais graves e com resultados de violência extrema, estão se tornando banais contra advogados e contra a advocacia. Nos últimos oito anos, contabilizamos 21 atentados com resultado morte, em Goiás, a advogados, no exercício da sua profissão, alguns até dentro do escritório. Muitos ainda, aliás, a maioria deles, sem resolução, definição de autoria e sem as devidas providências comportadas por parte das autoridades constituídas.
Com efeito, no presente caso, a atitude dessa autoridade ministerial não deve ser subestimada e nem mitigada, assim como qualquer ofensa que se faça a um trabalhador no legítimo exercício da sua profissão, por seu efeito pedagógico. Porém, maior ofensa comete quem fere um advogado na tribuna de seu labor, pois ali são ofendidos o próprio direito-dever de ampla defesa, do contraditório e os mais lídimos princípios legais e constitucionais que dão base de sustentação à igualdade, à liberdade e à vida de um povo.
Contudo, a “digna” representante do Ministério Público não parou por aí. Foi além: “Ninguém vai fazer maracutaia aqui na minha frente, não! ‘Essa é a minha comarca!’. Não admito que venham lá de Goiânia fazer malandragem aqui” (grifei).
Este é o segundo ponto que se destaca, a revelar a ainda mais gravosa e rudimentar ignorância da descuidada promotora, ao confundir o público e o privado nas questões de Estado. Postura inconcebível e alienação cultural inadmissível para quem exerce tão nobre função de promover a justiça.
Promotora, essa Comarca não é sua! É, antes, um categórico espaço público, em prol da justiça, em prol dos jurisdicionados, em prol da cidadania plena. No entanto, muitas autoridades não se cansam de confundir esse fundamento basilar do Direito Público com a palavra “minha…”, possessão sempre solta dos seus egos inflados.
Dia desses, ao participar de uma audiência na sala de um desembargador goiano, percebi o ambiente muito sóbrio, um ar austero, quase vazio. Não havia quadros, vi poucos adereços e até poucos livros… Indaguei àquela autoridade sobre a nítida simplicidade daquele gabinete, ao que me respondeu: “Só mantenho aqui o que é do Tribunal… Pouquíssimas coisas são particulares. Não posso confundir o bem estatal, o público e o privado”.
Essa é a consciência ético-moral que todos devemos ter no exercício de poder temporal em face da República – res pública – desde Platão e de Cícero, na antiga Grécia, e que nos alcança (ou deveria) nos dias de hoje. É, também, uma paradigmática e transcendente lição de Jesus Cristo – servidor público por excelência – quando declarou aos seus discípulos: “Eu não vim para ser servido, mas para servir”.
*Edemundo Dias de Oliveira Filho é advogado. Pastor Evangélico. Professor de Cursos de Pós-graduação. Especialista em Segurança Pública (PUC/GO). Especialista em Políticas Públicas (UFG). Mestre em Direito Público (Extremadura/Espanha).