Ivon Garcez*
O mito grego de Édipo narra a história de um homem que, sem saber, assassina o seu pai e casa-se com a própria mãe. Édipo, que nunca conviveu com seus pais biológicos, nutre uma paixão pela rainha de Tebas, o que o leva a cometer mais do que um regicídio, mas um parricídio inconsciente: num ato passional, assassina o rei de Tebas, que era, na verdade, seu pai desconhecido.
A deusa Hera, protetora da família, consternada com tamanha ofensa e decidida a punir a todos, envia uma esfinge para devastar a região. A criatura, após muito matar e destruir, propõe um enigma mortal que apenas Édipo consegue resolver, o que leva a esfinge ao suicídio. Como recompensa, ele é declarado rei e, finalmente, se casa com a rainha – sua mãe. O relacionamento incestuoso traz desgraças inevitáveis a Édipo, à sua futura família e ao próprio país, sendo o destino de Tebas marcado pela tragédia e ignomínia. Não houve vencedores, nem mesmo entre os aparentes “heróis”, salvadores da nação e de seus próprios interesses.
A história, contada na trilogia clássica de Sófocles (Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona), talvez revele o estado atual do relacionamento entre as instituições jurídicas e políticas no Brasil, que parece se caracterizar como perfeita tragédia à moda da Grécia antiga. Num embate assim, não existem heróis ou vencedores, e os aparentes “finais felizes de paz” talvez não passem de meras amarrações superficiais da confusão central – satisfatórias para alguns e frustrantes para outros, mas, para todos, incapazes de atingir ou enfrentar o verdadeiro problema, embrulhando-se em interesses muito superiores àquilo que compreende o cidadão comum.
- Introdução
1.1. O que é uma terra indígena e a sua demarcação?
As TI’s (Terras Indígenas) são territórios ocupados por povos indígenas, mas de propriedade da União. Importante denotar também que existem diferentes tipos de TI’s, como: as reservas indígenas (doadas por terceiros ou entregues pela União); as terras indígenas dominiais (adquiridas através de quaisquer formas de aquisição de propriedade comuns) e, por fim; as terras indígenas tradicionalmente ocupadas (áreas tidas como originariamente pertences aos índios, pois, tradicionalmente ocupadas, constituindo dever do Estado demarcá-las – sendo à elas que se refere a discussão acerca do “marco temporal das terras indígenas”)[i].
A demarcação das Terras Indígenas é um processo administrativo complexo e técnico, regulamentado principalmente pelo Decreto nº 1.775/96. Envolve várias etapas: desde a identificação e delimitação da área, realizada por uma equipe técnica multidisciplinar coordenada pela FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), até a homologação pelo Presidente da República e o registro na Secretaria do Patrimônio da União.
1.2. O que é o Marco Temporal das Terras Indígenas?
O Marco Temporal das Terras Indígenas foi uma tese jurídica que ganhou palco em 2009, através do julgamento do caso emblemático de demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, na Ação Popular proposta por Affonso Botelho Neto, em 20 de maio de 2005, praticamente um mês após a assinatura do Decreto presidencial de demarcação das áreas.
Esta tese consistia, inicialmente, na valorização do fator de posse das terras pelas comunidades na data de 5 de outubro de 1988 (data de promulgação da Constituição Federal) como elemento relevante para a comprovação da legitimidade da demarcação. Posteriormente, a tese enveredou-se para defender o marco temporal de promulgação da C.F./88 como critério objetivo e indispensável para possibilitar a demarcação.
Novos argumentos foram surgindo para sustentar a tese, mas, dentre eles, encontra-se especial guarida a crítica contra uma suposta “expansão ilimitada” das comunidades indígenas para áreas “já incorporadas ao mercado imobiliário”, citando palavras do Ministro do STF, Nunes Marques[ii].
- Desenvolvimento
2.1. De onde vem o Marco Temporal das Terras Indígenas?
Os “créditos” da elaboração da tese no curso da PET nº 3.388 (caso Raposa Serra do Sol) e o seu aparecimento oficial nesse processo, são um tanto controversos entre diversas fontes: há quem diga que surgiu na figura de um parecer desfavorável à ação pela AGU; há quem atribua-o ao voto do aposentado Min. Ayres Britto, relator da ação (fato que ele próprio negou veementemente[iii]); ou há ainda quem diga que sua origem veio de posição controvertida do, também aposentado, Min. Menezes Direito.
Fato é que, no contexto daquele processo, quando da resolução do conflito pelo STF acerca da validade da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, o marco temporal constou no acórdão como argumento pró-demarcação, pois, os indígenas da Serra do Sol, desde a promulgação da Carta Magna, jamais teriam deixado cair a “afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da ‘Raposa Serra do Sol”. Assim, trabalhando a Constituição Federal “com data certa — a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) —” estaria preenchido o “insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (STF, PET. nº 3.338, rel. Min. Ayres Brito, Tribunal Pleno, 19.03.2009)[iv].
Este argumento, surgido de um julgamento não-vinculativo da Corte Suprema e, na ocasião utilizado para defender a posição pró-demarcação das terras indígenas, mais tarde “se voltaria contra o feiticeiro”, em termos mais populares. Inúmeras tentativas de demarcação posteriores não contariam com o privilégio argumentativo de sustentar uma presença marcante anterior à data de 5 de outubro de 1988, sendo a partir daí que aqueles que se contrapunham às demarcações também passaram a utilizar a tese.
O marco temporal começou a ser crescentemente suscitado como critério objetivo referendado pelo Supremo Tribunal Federal, apto à validar a legitimidade da pretensão de uma demarcação, sem o qual esta seria plenamente ilegítima, um excesso e um “furto às claras” do direito de propriedade, numa bandeira de premissas belas para a sustentação de interesses secundários.
Quem defende as demarcações, porém, contra-argumenta as alegadas expulsões violentas sofridas pelos índios em suas terras natais, fato que, inviabilizando a sua permanência nas áreas presentemente requestadas, não poderia impedir agora o reconhecimento de seu direito histórico à habitá-las e dominá-las. Neste ponto de vista, o marco temporal é tido por um critério “anti-indígena”[v].
2.2. Por que a discussão se aqueceu ao público novamente?
O tema teve a atenção geral retomada em 2023, quando o Supremo Tribunal Federal derrubou a tese do marco temporal, declarando-a inconstitucional por 9 votos a 2. O Plenário, na ocasião, decidiu que a data da promulgação da Constituição Federal não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra pelas comunidades originárias. Essa decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365. Sendo um caso modelo para proferimento da decisão vinculativa, foi fixada tese (Tema 1.031) para a resolução ainda de outros 226 casos semelhantes que aguardavam, suspensos, o julgamento[vi].
Essa deliberação do Supremo quanto ao Tema 1.031, no entanto, aconteceu simultaneamente a uma importante discussão dentro do Legislativo, que se referia à aprovação do Projeto de Lei 2.903/23. Diz-se que, por meio de manobras em sua pauta de votações, o Senado Federal apenas aguardava a oficialização de uma posição por parte do STF para a confirmação da sua própria. De fato, em setembro de 2023, uma semana após a declaração de inconstitucionalidade pela Corte, o PL que legalizava o marco temporal, criando ainda outros obstáculos à demarcação das Terras Indígenas, foi aprovado dentro do Senado Federal.
O Executivo, dando um contorno já era esperado à situação, vetou parcialmente o PL, sancionando a agora Lei 14.701/23, com 34 vetos. Removeu-se do PL justamente as disposições acerca do marco temporal, dentre várias outras. A justificativa pairou justamente na inconstitucionalidade das disposições, conforme decisão do Supremo. Tal veto parcial, porém, como também já esperado, caiu perante o Senado, que o derrubou por quantidade expressiva de votos, deliberando pela promulgação integral da Lei.
Desta forma, portanto, que o “boomerang” retornou às mãos do STF: aprovada a 14.701/23, choveram as ações de controle de constitucionalidade sobre ela – cerca de cinco, ao todo. Todos os movimentos, até aí, previsíveis, antecipados por grande parte dos atores da extensa novela; a imprevisão, porém, veio no segundo tempo: circunstância inesperada veio balançar o barco da Corte Suprema do país, junto com todos os tripulantes e não tripulados.
2.3. O 6 de abril de 2024 de Elon Musk e o impacto na imagem do STF
O marco temporal das terras indígenas, o projeto que visava acabar com a saída temporária de presos, a proposta para a criminalização do porte de drogas, aborto, investigação e prisão de alguns parlamentares e as ditas fake news; estes são apenas alguns dos vários embates diretos recentes que vêm subindo alguns graus no tom do diálogo entre os Poderes.
É difícil imaginar, porém, em toda a história do Supremo Tribunal Federal algum evento que tenha abalado tanto a sua imagem pública quanto os episódios enfrentados em abril de 2024 junto ao empresário Elon Musk. Não é possível, nem mesmo, quantificar o dano que isso possa ter causado à percepção e imagem popular do Tribunal[vii].
Alguns parlamentares chegaram a afirmar que o STF enfrentou o cenário mais desfavorável desde a abertura do inquérito das fake news em 2019. A prova disso, disseram, seria o fato de que ele próprio iniciou um movimento interno para fortalecimento institucional perante os demais poderes, com articulação de uma série de jantares junto ao Executivo e reuniões com lideranças do Congresso Nacional[viii].
Tais eventos, criando dúvida em pessoas do povo que não participavam de alguma posição bem definida sobre o tema e gerando manifestações públicas massivas de contrariedade, abriram uma porta política para aqueles que ansiavam apenas por uma janela: formou-se uma coalisão opositiva num timing perfeito. Era o momento em que uma série de medidas tomadas pelo STF já geravam um cenário de irritação e instabilidade silenciosa com o Legislativo[ix].
É interessante notar, neste contexto, especialmente a data em que tudo começou e até quando se desdobrou. A primeira postagem feita por Musk foi em 6 de abril de 2024, o ponto alto da contenda se estendeu até praticamente o final do mês de abril. Um jantar entre os ministros do Supremo, o Presidente Lula e outros foi noticiado como tendo ocorrido na casa de Gilmar Mendes em 15 de abril de 2024, onde o arrefecimento da postura do Tribunal e diversos temas de conflito foram ditos como “em pauta” na mesa de jantar – inclusive o marco temporal das terras indígenas[x].
Este é um tópico necessário para compreender o movimento seguinte quanto ao marco temporal. Trata-se do contexto político indissociável, onde foi adotada a atual postura assumida pela Corte Suprema. É necessário ter em mente, sobretudo, o mês de abril de 2024.
2.4. Atual impasse
Visando discutir a constitucionalidade da Lei 14.701/23, como já citado, foram propostas 5 ações diferentes perante o Supremo Tribunal Federal, sendo elas: a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87; as 3 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI’s) 7.582, 7.583 e 7.586 e; a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 86.
Em 22 abril de 2024, o Supremo Tribunal Federal, na figura do Min. Gilmar Mendes que, por distribuição e, tornou-se relator de todas essas ações correntes perante o Supremo, decidiu pela suspensão de qualquer processo que discuta a constitucionalidade da 14.701/23, mas deixou de decidir diversas questões preliminares suscitadas pelos representantes dos indígenas.
De passagem, vale comentar uma das controvérsias preliminares levantadas, de ordem processual e alta importância, mas que também ainda não resolvida. Seria quanto a distribuição das ações sob a relatoria do Min. Gilmar Mendes, que foi questionada pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas), defensora da existência de prevenção do Min. Edson Fachin, pois, relatou o RE 1.017.365/SC (Tema 1.031), que declarou a inconstitucionalidade da tese do marco temporal. Relevante notar que o RE 1.017.365/SC, materialmente sobre o mesmo assunto, ainda está em curso e aguarda o julgamento dos embargos de declaração opostos ao julgamento.
Para fundamentar a sua decisão monocrática, Gilmar Mendes defendeu que “Essa controvérsia […] não será resolvida apenas com uma decisão judicial”[xi], quando também decidiu pela criação de uma comissão especial para a conciliação dos envolvidos, cuja qual fez de si mesmo presidente. Abriu prazo de 30 dias, para que os autores apresentassem propostas iniciais ao procedimento conciliatório, e marcou o dia 05 de agosto para o início dos trabalhos da referida comissão. “Uma desinteligência que necessita de mudança de rumos”, argumentou Mendes.
A referida comissão tem o propósito de “apresentar propostas de solução para o impasse político-jurídico em todas as ações de controle concentrado, sob minha relatoria, sem prejuízo de abarcarem [sic] outras demandas em curso nesta Corte, após aquiescência dos respectivos relatores”. Além disso, deverá “propor aperfeiçoamentos legislativos para a Lei 14.701/2023, sem prejuízo de outras medidas legislativas que se fizerem necessárias, voltados à superação do impasse e novo diálogo institucional”. Ela é formada por 24 membros e a expectativa é que os trabalhos se estendam, no máximo, até 18 de dezembro de 2024.
Ainda sobre o marco temporal, corre no presente momento, perante o Congresso Nacional, a PEC 48/2023. Em mesa da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o Projeto de Emenda Constitucional pretende a inclusão do marco temporal dentro do art. 231 da Carta Magna, visando-se driblar definitivamente as discussões sobre a constitucionalidade – o que pode não ser exatamente uma verdade. As deliberações sobre a PEC 48/203 foram suspensas em julho de 2024, por um pedido de vista coletivo[xii].
- Conclusão
Este é o status atual do marco temporal das terras indígenas – indissociável das faces do desconcerto interno despontado entre os Poderes. O aspecto jurídico nessa matéria, portanto, é aquele que tem ressoado por último hoje – lá no fundo, quase como um eco distante e por muito retardado: trata-se de uma discussão que adquiriu caráter imanentemente político, e o Judiciário, como ator, assumiu papel confuso nesta peça (e por que não “confundido”?).
Uma “guerra” entre os Poderes é algo que nenhum dos atores parece efetivamente querer comprar, ao optar pela caminhada em ovos. Então, a barganha se tornou um poder “central” – mesmo que a dinâmica democrática atual reviva de forma constante as preliminares deste conflito. Esses acordos políticos, com pretensão de reestabelecerem uma afinidade harmônica entre os representantes do povo e os representantes da Justiça, têm tido pouco ou quase nenhum sucesso em evitar o surgimento de novos pontos de fricção, criando-se uma paz armada que já tem evoluído para uma verdadeira “guerra fria”. A chantagem mútua nunca termina, e, em cada nova conciliação política, almoço ou jantar, o maior prejudicado perde mais: o povo.
Enfim, diante de todo o histórico da Corte nos últimos anos, tal determinação processual revela uma das abordagens mais peculiares para o rito do processo constitucional; até 12 de dezembro deste ano, ver-se-á os resultados de tal “inovação”. É homérica a tarefa – de novo remontando aos mitos gregos – de pensar numa solução que agrade a todos e seja, simultaneamente, justa. O fato é que há atores que, em tese, não deveriam ter de se preocupar com quem agradam ou deixam de agradar, mas o cenário destes tempos parece contrariar aquilo que idealizou Montesquieu e ecoou na Constituição de 88. O Judiciário brasileiro tem, hoje, um papel distinto.
*Ivon Garcez é analista jurídico no escritório João Domingos Advogados.
Referências
[i] Art. 231 da C.F. de 88. [acessado em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, nos 28.08.2024 e às 9h.
[ii] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=473051&ori=1, acesso nos 28.08.2024 e às 9h.
[iii] https://congressoemfoco.uol.com.br/area/justica/marco-temporal-e-inconstitucional-defende-ayres-britto/, acessado em 09.08.2024, às 10h05
[iv] https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630133, acessado em 09.08.2024, às 09h40
[v] https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/stf-enterra-tese-do-marco-temporal-das-demarcacoes-de-terras-indigenas, acessado em 09.08.2024, às 10h30
[vi] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=514834&ori=1, acessado em 28.08.2024, às 10h.
[vii] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/04/contestacao-a-moraes-aumenta-e-politicos-stf-e-governo-querem-nova-postura.shtml?utm_source=sharenativo&utm_medium=social&utm_campaign=sharenativo
[viii] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/04/stf-se-ve-sob-ataque-e-ministros-recorrem-a-lula-por-apoio.shtml
[ix] https://oglobo.globo.com/blogs/malu-gaspar/post/2024/04/musk-stf-e-governo-lula-o-novo-foco-de-atrito-em-acao-sobre-terras-indigenas.ghtml, acessado em 28.08.2024, às 10h.
[x] https://www.poder360.com.br/poder-justica/justica/lula-vai-a-jantar-pro-supremo-com-gilmar-moraes-dino-e-zanin/ e https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/04/16/lula-participa-de-jantar-com-ministros-do-stf-apos-serie-de-ataques-de-musk-a-moraes-e-a-corte.ghtml, acessados em 28.08.2024, às 10h30
[xi] https://www.socioambiental.org/sites/default/files/noticias-e-posts/2024-04/paginador%20%2833%29.pdf, acessado em 28.08.2024, às 14h.
[xii] https://apiboficial.org/2024/07/12/ccj-adia-discussao-sobre-pec-48-mas-promete-retomar-debate/, acessado em 28.08.2024, às 15h.