“Lavagem” de dinheiro. Breves notas sobre a cegueira deliberada e a “autolavagem”

*Leão Aparecido Alves

Introdução

O autor, o coautor ou o partícipe na perpetração do crime antecedente que, após a obtenção do produto do crime, procede à ocultação ou à dissimulação do produto do delito, pratica a chamada “autolavagem”. Por sua vez, o sujeito que não teve conhecimento direto do delito antecedente, nem, obviamente, dele participou, pode, não obstante, ser condenado pelo delito de “lavagem” do produto do crime antecedente se tiver procedido, pelo menos, com cegueira deliberada em relação a esse delito. Em ambos os casos é necessário que as ações praticadas pelo agente visem a “[o]cultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.” Lei 9.613, de 3 de março de 1998 (Lei 9.613), art. 1º, caput. Nosso objetivo, nestas parcas linhas, consiste em oferecer alguns subsídios para o estudo da cegueira deliberada e da “autolavagem”.

Cegueira deliberada[1]

Nos termos da doutrina da cegueira voluntária ou deliberada, com origem no Direito Inglês da segunda metade do Século XIX[2], também age com dolo o agente que, intencionalmente, cerra os olhos para a existência de prova clara da ocorrência de fatos relevantes, os quais são fortemente sugeridos pelas circunstâncias de conhecimento do agente.[3] O primeiro caso a endossar essa doutrina, na Suprema Corte dos Estados Unidos, embora sem assim nominá-la, envolveu o empregado de um banco acusado de ter certificado como bom um cheque sacado de uma conta que não tinha fundos suficientes para honrá-lo. A Corte decidiu que existiria o dolo na conduta do empregado se ele, deliberadamente (ou intencionalmente), tivesse se colocado em posição de ignorância quanto à questão de saber se o correntista tinha fundos suficientes, ou não.[4] Em síntese, uma pessoa não pode fechar os olhos, quando lhe aprouver, para uma miríade de fatos relevantes e, depois, fundar a escusa de sua ignorância na asserção de que nada viu. Exige-se, assim, no contexto do crime de “lavagem”, que o agente atue de forma intencional para evitar tomar conhecimento direto da origem criminosa dos bens, direitos ou valores.

A jurisprudência nacional tem equiparado a doutrina da cegueira deliberada ao dolo eventual, e, ao contrário de parte dos doutrinadores, tem admitido a prática do crime de “lavagem” mediante dolo eventual. Nesse sentido, a Ministra Rosa Weber, no julgamento de um dos embargos infringentes opostos no Caso “Mensalão”, afirmou que:

O Direito Comparado favorece o reconhecimento do dolo eventual, merecendo ser citada a doutrina da cegueira deliberada construída pelo Direito anglo-saxão (willful blindness doctrine).

Para configuração da cegueira deliberada em crimes de lavagem de dinheiro, as Cortes norte-americanas têm exigido, em regra, (i) a ciência do agente quanto à elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos provenham de crime, (ii) o atuar de forma indiferente do agente a esse conhecimento, e (iii) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa.

Nesse sentido, há vários precedentes, como US vs. Campbell, de 1992, da Corte de Apelação Federal do Quarto Circuito, US vs. Rivera Rodriguez, de 2003, da Corte de Apelação Federal do Terceiro Circuito, US vs. Cunan, de 1998, da Corte de Apelação Federal do Primeiro Circuito.

Embora se trate de construção da common law, o Supremo Tribunal Espanhol, corte da tradição da civil law, acolheu a doutrina em questão na Sentencia 22/2005, em caso de lavagem de dinheiro, equiparando a cegueira deliberada ao dolo eventual, também presente no Direito brasileiro.

(STF, AP 470 EI-décimos sextos, Rel. Min. Luiz Fux, Rel. p/ Acórdão Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 13/03/2014, DJe-161 21-08-2014.)[5]

Nos termos do art. 18, inciso I, do CP, “[d]iz-se o crime”, “doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. A primeira parte corresponde ao dolo direto, e, a segunda, em itálico, ao dolo eventual. Por sua vez, a razão subjacente à equiparação da cegueira deliberada ao dolo direto (actual knowledge) consiste na asserção de que o agente deliberadamente cego é tão culpado quanto aquele que tem conhecimento direto dos fatos.[6]

Embora tenha acolhido a doutrina da cegueira deliberada (willful blindness), a Suprema Corte dos Estados Unidos o fez com alcance mais restrito do que o comumente admitido pelos Tribunais Federais de Recursos (Circuit Courts of Appeals). Segundo a Corte, o reconhecimento de que o agente agiu com cegueira deliberada fundamenta-se em dois requisitos básicos: (1) o agente deve subjetivamente acreditar que há uma alta probabilidade da existência de determinado fato, no caso, “de que os bens, direitos ou valores envolvidos provenham de crime”[7] e (2) o agente deve adotar de forma voluntária ações para evitar tomar conhecimento direto (dolo direto) desse fato, ou seja, da origem criminosa dos bens, direitos ou valores. Assim sendo, o agente voluntariamente cego é aquele que pratica ações deliberadas visando a evitar tomar conhecimento da alta probabilidade da ocorrência de uma ilicitude, e, em relação ao qual, quase se pode dizer, tem conhecimento efetivo (ou dolo direto) quanto aos fatos relevantes dessa ilicitude.[8] A Suprema Corte norte-americana afastou, expressamente, a possibilidade do reconhecimento da cegueira voluntária com base numa indiferença deliberada. No ponto, a Corte não acolheu o requisito comumente empregado pelos Tribunais Federais de Apelação, relativo ao agente “atuar de forma indiferente [ao] conhecimento” dos fatos relevantes.[9] Segundo a Corte, uma indiferença deliberada para com a existência de um risco conhecido da prática de uma irregularidade, é insuficiente ao reconhecimento da cegueira voluntária.[10] Na verdade, o atuar de forma indiferente pode resultar da circunstância de que o agente desconhece, efetivamente, os fatos relevantes, e, não, de uma cegueira deliberada. Para a Corte, a observância desses dois requisitos confere à cegueira voluntária um alcance apropriadamente limitado (ao âmbito do dolo), o qual ultrapassa a imprudência e a negligência,[11] caracterizadoras, em nosso Direito, da culpa stricto sensu.

A indiferença deliberada remete à negligência, e, portanto, à culpa. A cegueira deliberada, na formulação acolhida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, é mais do que o dolo eventual codificado no art. 18, inciso I, do CP, e, claro, menos do que o dolo direto. Assim sendo, reconhecer a presença do dolo com base nessa doutrina exige mais do que o mero “assumir o risco de produzir”. CP, art. 18, inciso I. Aliás, uma indiferença deliberada para com a existência de um risco conhecido, como acima ressaltado, é insuficiente à caracterização da cegueira voluntária. Nesse contexto, a doutrina da cegueira deliberada não equivale à conduta daquele que assume o risco de produzir o resultado. CP, art. 18, inciso I. A cegueira voluntária não se contenta com o mero “assumir o risco de produzir”, porquanto demanda, por parte do agente, mais do que uma indiferença deliberada para com a existência de um risco conhecido. Ela exige que o agente acredite subjetivamente na alta probabilidade da existência de fatos relevantes e, concomitantemente, pratique, de forma intencional, atos destinados a evitar que ele tome conhecimento direto (dolo direto) desses fatos.

Na verificação da presença da cegueira deliberada, ou do dolo eventual, é necessário considerar, dentre outras circunstâncias decorrentes do caso concreto, o nível de confiança depositado pelo agente (suposto deliberadamente cego) no autor do delito antecedente ou daquele que tem conhecimento direto da origem criminosa dos bens, direitos ou valores envolvidos; a existência, ou não, de relação de parentesco entre eles; a idade do agente; o nível de instrução do agente; a experiência de vida do agente; os fatos que estavam disponíveis ao agente quando ele recebeu os bens, direitos ou valores.

“Autolavagem”

A “autolavagem” consiste na prática da “lavagem” de dinheiro pelo autor, coautor ou partícipe do crime antecedente.[12] O estabelecimento da tipicidade, no caso de “autolavagem”, em geral, não encontra grande dificuldade quando o agente, de posse do bem, direito ou valor (obtidos na perpetração do crime antecedente), pratica atos claramente destinados a assegurar a ocultação ou a dissimulação da origem, natureza, propriedade e localização do produto do crime.[13] A dificuldade surge nos delitos em que o recebimento da quantia ilícita, a ser objeto de “lavagem”, constitui o momento que também marca a consumação do delito antecedente.

No limiar do julgamento da AP 470/DF (Caso “Mensalão”), o Relator, Ministro Joaquim Barbosa, identificou, na conduta de João Paulo Cunha, os traços marcantes de uma transação típica de “lavagem” de dinheiro. Segundo o Ministro Joaquim Barbosa,

[o] modus operandi utilizado para a consecução das operações de lavagem de dinheiro pode ser assim resumido: 1) a SMP&B emitiu cheque oriundo de conta mantida no banco Rural em Belo Horizonte, nominal a ela própria (SMP&B), com o respectivo endosso, sem qualquer identificação de outro beneficiário além da própria SMP&B; 2) a agência do banco Rural em Belo Horizonte, onde o cheque foi emitido, enviou fax à agência do banco Rural onde o saque seria efetuado (no caso, Brasília), confirmando a posse do cheque e autorizando o levantamento dos valores pela pessoa indicada informalmente pela SMP&B, no caso, a esposa do acusado, Sra. Márcia Regina Milanésio Cunha; 3) Conforme detalhado no Item IV, nessas operações de lavagem de dinheiro, o Banco Rural, apesar de saber quem era o verdadeiro sacador, tanto é que enviava um fax com a autorização em nome da pessoa, não registrava o saque em nome do verdadeiro sacador/beneficiário. A própria SMP&B aparecia como sacadora, com a falsa alegação de que os valores se destinavam ao pagamento de fornecedores. Essa informação falsa alimentava a base de dados do Bacen e do Coaf; 4) a Sra. Márcia Regina Milanésio Cunha recebeu pessoalmente o dinheiro, que já estava separado na agência, baseando-se, apenas, na identificação e na autorização informalizada enviada por fax para a agência de Brasília. Com esses mecanismos, o verdadeiro portador dos recursos em espécie permaneceu oculto, bem como dissimularam-se a origem, natureza, localização, movimentação e propriedade do dinheiro recebido, que era fruto de crime contra a administração pública. Por esse mecanismo, que, por sua eficácia, permitiu que os fatos permanecessem encobertos por quase dois anos, até mesmo se o próprio Sr. João Paulo Cunha tivesse se dirigido pessoalmente à agência do Banco Rural em Brasília, teria praticado o crime de lavagem de dinheiro.

(STF, AP 470/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2012, DJe 22/04/2013.)

Porém, o STF, no julgamento de diversos embargos infringentes no âmbito do Caso “Mensalão”, concluiu que “[a] autolavagem pressupõe a prática de atos de ocultação autônomos do produto do crime antecedente (já consumado)”.[14] Com esse entendimento, o STF afastou a condenação do ex-presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, pelo delito de “lavagem”. Prevaleceu a corrente iniciada pelo Ministro Roberto Barroso. Segundo a maioria, a condenação pela “lavagem” fundou-se no entendimento de “que a retirada do dinheiro por pessoa interposta seria uma forma de dissimular a corrupção antecedente. A hipótese seria, portanto, de autolavagem.”[15] No julgamento da AP 470, a maioria do STF “entendeu que o recebimento de vantagem indevida, de forma dissimulada, caracterizaria, a um só tempo, os crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.”[16] Na autolavagem é necessário diferenciar os atos de consumação ou exaurimento do crime antecedente dos atos de “lavagem”, a fim de “evitar dupla incriminação pelo mesmo fato” (non bis in idem).[17] O entendimento da maioria, no julgamento da AP 470, fundou-se no raciocínio de que o crime de corrupção passiva (CP, art. 317), “dada sua natureza formal, consumou-se no momento da aceitação da vantagem indevida pelo acusado João Paulo Cunha.”[18] Nessa linha de compreensão, “[o] sistema dolosamente utilizado para o recebimento dos cinquenta mil reais constituiria, consequentemente, ato ilícito diverso do crime antecedente.”[19] Por isso, a maioria “entendeu que o recebimento foi o ato final do processo de lavagem de dinheiro, e não da corrupção passiva – que já teria se consumado.” No julgamento dos embargos infringentes, porém, prevaleceu, como já referido, tese contrária, com base no argumento de que “o crime de corrupção passiva, na modalidade receber, consuma-se no momento do pagamento da vantagem indevida, dada a sua natureza material. Desse modo, o recebimento da propina pela interposição de terceiro constitui a fase consumativa do delito antecedente, tendo em vista que corresponde ao tipo objetivo ‘receber indiretamente’ previsto no art. 317 do Código Penal.”[20] A maioria concluiu que “[o] recebimento por modo clandestino e capaz de ocultar o destinatário da propina, além de esperado, integra a própria materialidade da corrupção passiva, não constituindo, portanto, ação distinta e autônoma da lavagem de dinheiro.”[21] Assim, “[p]ara caracterizar esse crime autônomo [“lavagem”] seria necessário identificar atos posteriores, destinados a recolocar na economia formal a vantagem indevidamente recebida.”[22] Ou, ainda, nas palavras do Ministro Teori Zavascki, “a ação objetiva de ocultar reclama, para sua tipicidade, a existência de um contexto capaz de evidenciar que o agente realizou tal ação com a finalidade específica de emprestar aparência de licitude aos valores.”[23]

Em caso no qual servidor público promovia a transferência de dinheiro, por meio do Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira), para a conta de terceiros, os quais, em seguida, transferiam os recursos para a conta bancária do servidor, o TRF 1ª Região, embora sem mencionar a expressão “autolavagem”, não reconheceu a prática do crime de “lavagem”. A Corte decidiu que o comportamento não era idôneo à ocultação da natureza, origem e localização dos valores subtraídos da Conta Única do Siafi, bem como que o agente precisou usar contas de terceiros para praticar o delito de peculato, porquanto não poderia, em virtude de controle do próprio sistema, efetuar a transferência para sua própria conta. Além disso, ressaltou-se que o delito de “lavagem” somente poderia ser perpetrado depois que o agente tivesse a disponibilidade física ou jurídica dos valores, o que não ocorria enquanto estivessem na conta de terceiros.[24]

No tocante à operação contrária, ou seja, o depósito do dinheiro oriundo do crime em conta de terceiros, visando a ocultar a sua origem, localização e propriedade, o STF entendeu caracterizar o delito de “lavagem”. Segundo o STF, “[o] depósito de cheques de terceiro recebidos pelo agente, como produto de concussão, em contas-correntes de pessoas jurídicas, às quais contava ele ter acesso, basta a caracterizar a figura de ‘lavagem de capitais’ mediante ocultação da origem, da localização e da propriedade dos valores respectivos (L. 9.613, art. 1º, caput)”.[25] Segundo o STF, “o tipo não reclama nem êxito definitivo da ocultação, visado pelo agente, nem o vulto e a complexidade dos exemplos de requintada ‘engenharia financeira’ transnacional, com os quais se ocupa a literatura.” (STF, RHC 80816, supra. Grifo omitido.) Nesse caso, o crime de concussão já estava consumado, porquanto o agente da autolavagem tinha em seu poder os cheques extorquidos das vítimas. O depósito dos cheques nas contas de terceiros, “às quais contava [o agente] ter acesso” (STF, RHC 80816, supra), visava a ocultar a origem, a localização e a propriedade do produto do crime. Esse caso discrepa daquele julgado pelo TRF 1ª Região, acima referido, num aspecto crucial, porque, nele, quando os cheques foram depositados na conta dos terceiros, o crime de concussão já estava consumado, ao passo que, na espécie apreciada pelo TRF 1ª Região, o peculato se consumou quando os recursos foram depositados na conta dos terceiros. Assim, nesse último caso, o posterior depósito dos valores objeto do peculato na conta do servidor público, agente desse delito, não caracteriza “lavagem” de dinheiro. Segundo o TRF 1ª Região, com apoio em decisão do STJ, “não há que se falar em lavagem de dinheiro se, com o produto do crime, o agente se limita a depositar o dinheiro em conta de sua própria titularidade, paga contas ou consome os valores em viagens ou restaurantes. […] (APn n. 458/SP […])”.[26] Como acima ressaltado, a tipificação da “lavagem” demanda a existência do “elemento subjetivo, consistente na especial finalidade do agente de […] atingir o propósito de ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de crime”.[27] Assim, quando o autor do crime antecedente deposita o produto do crime em sua própria conta, para dele usufruir, não está praticando “lavagem”, diante da óbvia ausência do elemento subjetivo do tipo. Para a tipificação da “lavagem” é necessária a comprovação do “especial fim de agir […], qual seja, o intuito de ocultar ou dissimular utilização de bens, direitos e valores provenientes dos crimes antecedentes”.[28]

A conduta do autor, coautor ou partícipe do crime antecedente de usufruir do produto do crime, comprando veículos caros, pagando festas suntuosas, adquirindo imóveis de luxo ou esbanjando em viagens ao exterior, por exemplo, são condutas que, em princípio, não caracterizam “lavagem”. Para a configuração da “lavagem”, como acima ressaltado, é necessário que essas ações tenham sido praticadas para ocultar ou dissimular a origem, a localização ou a propriedade do produto do crime. Os Tribunais Federais de Apelação americanos têm decidido que o mero ato de usufruir (mere spending) do produto do crime não caracteriza “lavagem” de dinheiro. Como bem resumiu o Tribunal Federal de Recursos para o 10º Circuito, é uma tarefa difícil separar os atos que caracterizam o crime de “lavagem” de dinheiro, o qual é punido com pena máxima superior a 16 anos de reclusão (Lei 9.613, art. 1º, § 5º), do mero ato de despender (ou gastar) dinheiro, que é uma atividade perfeitamente legal.[29] Em suma, a lei de “lavagem” de dinheiro, como ressaltado pelo 8º Circuito, não pode ser aplicada como se fosse a lei de “gastar” dinheiro.[30] Nesse caso, o 8º Circuito afastou a condenação por “lavagem” embasada apenas na remessa de valores de uma para outra conta bancária. Por identidade de razão, os atos de depositar o produto do crime em conta bancária devidamente identificada e de gastar os recursos respectivos, foram tidos pelo 7º Circuito como sendo insuficientes à configuração da intenção de ocultar ou dissimular a origem criminosa do dinheiro depositado.[31] Na realidade, todos os atos praticados pelo criminoso que impliquem o uso do dinheiro para adquirir alguma coisa têm o potencial de ocultar os recursos, os quais são transformados na coisa adquirida. Porém, o tipo legal em causa exige a presença do “elemento subjetivo, consistente na especial finalidade do agente de, praticando tais ações [adquirir bens ou gastar o dinheiro], atingir o propósito de ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de crime”.[32] Com essa compreensão, o 1º Circuito não reconheceu a prática de “lavagem” em caso no qual a esposa de um traficante era responsável pelo gerenciamento da conta bancária do casal e pela aquisição de bens, tais como veículos caros, barcos, imóveis e itens de decoração.[33] Em contexto semelhante, o 5º Circuito não reconheceu a prática de “lavagem” em caso no qual o marido depositava dinheiro provindo de crime na conta bancária da esposa, a qual utilizava o numerário no pagamento de despesas residenciais ordinárias da família.[34] No mesmo sentido, o 6º Circuito não reconheceu a prática de “lavagem” em caso no qual o autor do crime antecedente (furto) adquiriu um relógio Rolex, uma pulseira de tênis de diamante e vinhos caros.[35] O 6º Circuito também não reconheceu a prática de “lavagem” em caso no qual o autor do crime antecedente movimentava conta-corrente com o produto do crime, emitindo cheques e efetuando saques.[36] O 10º Circuito afastou a condenação pela prática do crime de “lavagem” em casos nos quais o dinheiro oriundo de atividade criminosa foi usado na aquisição de veículos registrados em nome de membros da família do autor do crime antecedente.[37] Também o TRF 1ª Região não reconheceu a prática de “lavagem” em caso no qual o autor do crime antecedente usou dinheiro proveniente da prática do crime de contrabando para adquirir veículo registrado em nome de sua companheira. A Corte concluiu pela ausência de prova suficiente de que “a aquisição foi praticada para ‘[o]cultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime’”.[38] O Juízo invocou, dentre outros fundamentos, o disposto no art. 1.725 do Código Civil, segundo o qual, “[n]a união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.” E explicou que “a aquisição pelo companheiro de um veículo em nome da companheira não tem aptidão para ‘[o]cultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime’.”[39] Em igual sentido, o 2º Circuito absolveu traficante acusado de “lavagem” de dinheiro na aquisição de um veículo com o produto do crime.[40]

Não é muito incomum, especialmente no Brasil, a situação em que o autor do crime antecedente é pilhado transportando ou mantendo em depósito o dinheiro produto daquele. As ações físicas de transportar ou guardar o produto do crime, por si sós, não caracterizam o crime de “lavagem”. Sempre é necessária a presença do “elemento subjetivo, consistente na especial finalidade do agente de, praticando tais ações [transportar ou guardar], atingir o propósito de ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de crime”.[41] O mero guardar, ter em depósito ou transportar coisa que sabe ser produto de crime, sem a presença do elemento subjetivo da ocultação ou dissimulação, é insuficiente à configuração do crime de “lavagem”, podendo caracterizar o crime de receptação, se o agente não for autor, coautor ou partícipe do crime antecedente. CP, art. 180.

No caso Regalado Cuellar v. United States, 553 U. S. 550 (2008), a Suprema Corte dos Estados Unidos abordou questão similar envolvendo um cidadão mexicano que foi flagrado transportando mais de 80 mil dólares em direção à fronteira com o México.[42] O dinheiro estava escondido num compartimento secreto sob o piso traseiro. Havia pelo de animal espalhado na parte traseira do veículo para disfarçar o cheiro de maconha.[43] Além dessa quantia, Regalado Cuellar tinha dinheiro no bolso da camisa exalando odor de maconha.[44] Regalado Cuellar foi processado por tentativa de transporte do produto de atividade ilícita através da fronteira, tendo conhecimento de que o transporte se destinava, no todo ou em parte, a ocultar ou a dissimular a natureza, a localização, a origem, a propriedade ou o controle sobre o produto dessa atividade.[45] Condenado pelo júri, Regalado Cuellar foi absolvido, por maioria, por uma das turmas (panels) do 5º Circuito.[46] Porém, o Plenário (en banc) daquela Corte, também por maioria, restabeleceu a condenação.[47] Daí o recurso à Suprema Corte. A Corte não reconheceu a necessidade, à tipificação, de a acusação comprovar que as ações perpetradas pelo agente tinham por objetivo tentar criar a aparência de uma riqueza legítima.[48] Todavia, a Corte concluiu que o simples fato de o réu transportar em direção ao México dinheiro proveniente de tráfico de drogas, de forma camuflada num veículo, não constituía violação ao dispositivo legal pelo qual fora ele condenado.[49] Ao final, a Corte decidiu que a prova produzida pela acusação era insuficiente para permitir que um júri razoável pudesse concluir, acima de dúvida razoável, que o transporte efetuado pelo réu estava destinado, no todo ou em parte, a ocultar ou a dissimular a natureza, a localização, a origem, a propriedade ou o controle sobre o produto do crime.[50]

Posta assim a questão, a caracterização do crime de “lavagem”, na hipótese de “autolavagem”, demanda a comprovação da prática de atos destinados a “ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal”, não sendo suficientes atos que caracterizem a mera fruição do produto do crime, nem aqueloutros inidôneos à consecução dos fins previstos no tipo penal. Lei 9.613, art. 1º, § 1º.

*Leão Aparecido Alves, juiz Federal da 11ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Goiás, Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Anhanguera-Uniderp

[1] O âmbito de aplicação dessa doutrina não se restringe ao crime de “lavagem” nem, somente, ao Direito Penal. Ela incide em qualquer caso, cível (lato sensu) ou criminal. Aliás, o caso em que a Suprema Corte dos Estados Unidos tratou, de forma específica, sobre a cegueira deliberada, versou sobre infração à lei de patentes. Global-Tech Appliances, Inc., et al., v. SEB S. A., 563 U. S. 754 (2011). Nesse importante precedente, a Corte, depois de fixar os requisitos necessários à verificação da presença da cegueira voluntária, concluiu, diante da análise dos fatos provados nos autos, que os administradores da empresa ré, na ação de infração à lei de patentes, haviam agido com cegueira deliberada.

[2] Global-Tech, 563 U. S. 766-767. (Nota de rodapé 6.)

[3] Global-Tech, 563 U. S. 766.

[4] Global-Tech, 563 U. S. 766-767.

[5] No mesmo sentido, reconhecendo a aplicabilidade, em nosso sistema jurídico, da doutrina da cegueira deliberada: TRF 1ª Região, HC 0070111-82.2016.4.01.0000/BA, Rel. Desembargador Federal Ney Bello, Terceira Turma, e-DJF1 de 05/05/2017; TRF 2ª Região, ACR 200951170013742, Desembargador Federal Marcello Ferreira de Souza Granado, Primeira Turma Especializada, E-DJF2R 26/09/2014; TRF 3ª Região, ACR 00011231720084036181, Juíza Convocada Denise Avelar, Segunda Turma, e-DJF3 10/12/2015; TRF 4ª Região, ACR 500194568201340047004, Rel. Ricardo Rachid de Oliveira, Sétima Turma, D.E. 25/02/2015; TRF 5ª Região, ACR 200581000145860, Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, Segunda Turma, DJ 22/10/2008 P. 207.

[6] Global-Tech, 563 U. S. 766.

[7]  STF, AP 470 EI-décimos sextos, supra.

[8] “While the Courts of Appeals articulate the doctrine of willful blindness in slightly different ways, all appear to agree on two basic requirements: (1) the defendant must subjectively believe that there is a high probability that a fact exists and (2) the defendant must take deliberate actions to avoid learning of that fact. We think these requirements give willful blindness an appropriately limited scope that surpasses recklessness and negligence. Under this formulation, a willfully blind defendant is one who takes deliberate actions to avoid confirming a high probability of wrongdoing and who can almost be said to have actually known the critical facts. See G. Williams, Criminal Law § 57, p. 159 (2d ed. 1961) (“A court can properly find wilful blindness only where it can almost be said that the defendant actually knew”). By contrast, a reckless defendant is one who merely knows of a substantial and unjustified risk of such wrongdoing, see ALI, Model Penal Code § 2.02(2)(c) (1985), and a negligent defendant is one who should have known of a similar risk but, in fact, did not, see § 2.02(2)(d).” Global-Tech, 563 U. S. 769-770. (Nota de rodapé omitida.)

[9]  STF, AP 470 EI-décimos sextos, supra.

[10] Global-Tech, 563 U. S. 770.

[11] Global-Tech, 563 U. S. 769.

[12] Nem todos os países incriminam a autolavagem. Por exemplo, “o ordenamento alemão não admite que seja punido pela lavagem quem for punível pela participação no crime antecedente, ex vi do parágrafo 9º, 2, do § 261 do Código Penal alemão.” (STF, AP 470 EI-sextos, Rel. Min. Luiz Fux, Rel. p/ Acórdão: Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 13/03/2014, DJe-161 21-08-2014.) Também não a admitem os ordenamentos italiano, argentino, austríaco e sueco. (MÜLLER, Thiana Borchhardt. A autonomia do crime antecedente no crime de lavagem de dinheiro. Disponível em <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2010_2/thiana_muller.pdf>. Acesso em: 2 out. 2017.) Já os ordenamentos português e espanhol a admitem expressamente. (BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Reflexões sobre a AP 470 e Lavagem de dinheiro. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2013-jul-16/direito-defesa-reflexoes-ap-470-lavagem-dinheiro>. Acesso em: 22 set. 2017.)

[13] Assim, o traficante que acabou de receber o pagamento por uma partida de drogas e adquire mais matrizes para reprodução em sua fazenda pratica, inegavelmente, o crime de “lavagem”. Esse ato, embora singelo, é destinado a ocultar a origem, a natureza e a localização do produto do tráfico. Além disso, a inserção de recursos ilícitos numa atividade legítima, a conhecida mescla, é característica de “lavagem” de dinheiro. O crime de tráfico não se consuma com o recebimento do pagamento pela venda de drogas, mas, por exemplo, com o mero ato de ter em depósito entorpecente. Lei 11.343, de 2006, art. 33, caput. Em caso no qual o agente adquiria novilhas com o produto do tráfico e as mantinha numa fazenda, arrendada para ser um entreposto de drogas, o TRF 1ª Região manteve a condenação pela prática do crime de “lavagem”. (TRF 1ª Região, ACR 0023655-65.2007.4.01.3500/GO, Rel. Desembargadora Federal Assusete Magalhães, Terceira Turma, e-DJF1 p. 357 de 29/10/2009.) A Corte transcreveu, com aprovação, o fundamento do Juízo no sentido de que “a aquisição das novilhas iria permitir o ‘branqueamento’ dos capitais ilícitos investidos, uma vez que elas produziriam bezerros que poderiam ser vendidos licitamente, tornando lícito o produto do que foi adquirido ilicitamente.” (TRF 1ª Região, ACR 0023655-65.2007.4.01.3500/GO, supra.) Como bem lembrou a Corte, essa é “uma das formas clássicas de lavagem de dinheiro.” (TRF 1ª Região, ACR 0023655-65.2007.4.01.3500/GO, supra.)

[14] STF, AP 470 EI-sextos, Rel. Min. Luiz Fux, Rel. p/ Acórdão: Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 13/03/2014, DJe-161 21-08-2014.

[15] STF, AP 470 EI-sextos, supra.

[16] STF, AP 470 EI-sextos, supra.

[17] STF, AP 470 EI-sextos, supra.

[18] STF, AP 470 EI-sextos, supra.

[19] STF, AP 470 EI-sextos, supra.

[20] STF, AP 470 EI-sextos, supra.

[21] STF, AP 470 EI-sextos, supra.

[22] STF, AP 470 EI-sextos, supra.

[23] STF, AP 470 EI-sextos, supra.

[24] TRF 1ª Região, ACR 0015044-21.2010.4.01.3500/GO, Rel. Desembargador Federal Mário César Ribeiro, Terceira Turma, e-DJF1 de 06/05/2016.

[25] STF, RHC 80816, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 10/04/2001, DJ 18-06-2001 P. 13. Grifo omitido.

[26] TRF 1ª Região, ACR 0015044-21.2010.4.01.3500/GO, supra. Grifo omitido.

[27] STJ, APn 472/ES, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Corte Especial, julgado em 01/06/2011, DJe 08/09/2011.

[28] TRF 1ª Região, ACR 0007688-75.2006.4.01.3900/PA, Rel. Desembargador Federal Hilton Queiroz, Quarta Turma, e-DJF1 p. 318 de 30/05/2012.

[29] United States v. Garcia Emanuel, 14 F. 3d 1469, 1473 (10th Cir. 1994).

[30] “As we stated in United States v. Rockelman, the money-laundering statute should not be used as a ‘money spending statute.’  49 F.3d 418, 422 (citing United States v. Sanders, 928 F.2d 940, 946 (10th Cir.), cert. denied, 502 U. S. 845, 112 S. Ct. 142, 116 L. Ed. 2d 109 (1991)).” United States v. Herron, 97 F. 3d 234, 237 (8th Cir. 1996).

[31] United States v. Esterman, 324 F. 3d 565, 570–572 (7th Cir. 2003).

[32] STJ, APn 472/ES, supra.

[33] United States v. Corchado Peralta, 318 F. 3d 255, 259 (1st Cir. 2003).

[34] United States v. Dobbs, 63 F. 3d 391, 398 (5th Cir. 1995).

[35] United States v. Marshall, 2001 WL 418032 (6th Cir. April 25, 2001).

[36] United States v. McGahee, 257 F. 3d 520, 527 (6th Cir. 2001).

[37] United States v. Sanders, 928 F.2d 940 (10th Cir. 1991); United States v. Lovett, 964 F.2d 1029 (10th Cir. 1992).

[38] TRF 1ª Região, ACR 0031271-52.2011.4.01.3500/GO, Rel. Juiz Federal Henrique Gouveia da Cunha (Conv.), Quarta Turma, e-DJF1 de 19/10/2016.

[39] TRF 1ª Região, ACR 0031271-52.2011.4.01.3500/GO, supra.

[40] United States v. Stephenson, 183 F. 3d 110, 120–121 (2nd Cir. 1999).

[41] STJ, APn 472/ES, supra.

[42] Regalado Cuellar, 553 U. S. 553.

[43] Regalado Cuellar, 553 U. S. 554.

[44] Regalado Cuellar, 553 U. S. 553.

[45] Regalado Cuellar, 553 U. S. 554.

[46] Regalado Cuellar, 553 U. S. 554-556.

[47] Regalado Cuellar, 553 U. S. 556.

[48] Regalado Cuellar, 553 U. S. 557-561.

[49] “We agree with petitioner that merely hiding funds during transportation is not sufficient to violate the statute, even if substantial efforts have been expended to conceal the money.” Regalado Cuellar, 553 U. S. 563.

[50] “In sum, we conclude that the evidence introduced by the Government was not sufficient to permit a reasonable jury to conclude beyond a reasonable doubt that petitioner’s transportation was ‘designed in whole or in part . . . to conceal or disguise the nature, the location, the source, the ownership, or the control of the proceeds.’ § 1956(a)(2)(B)(i).” Regalado Cuellar, 553 U. S. 568.