Internação compulsória de usuários de crack

A cruzada nacional, promovida por prefeitos, governadores e presidente da república pela internação compulsória de usuários de crack, que hoje vivem nas ruas, toca superficialmente no grave problema da desassistência ao doente mental. Mas, a intenção é boa e a iniciativa demonstra um primeiro interesse do Estado em resolver a questão.

Brasil afora, há uma enormidade de moradores de rua, acometidos pela esquizofrenia e outras psicoses, que não têm acesso a tratamento. Isto é o resultado da exclusão do médico da assistência ao doente mental e do fechamento ideológico de leitos hospitalares psiquiátricos, na contramão do bom senso que deveria prevalecer: qualificar profissionais e serviços para oferecer melhores condições de atendimento à população. O débito do Estado junto a esta população é gigantesco e é necessário que os governos se responsabilizem pelos doentes mentais, corrigindo os graves erros da política de assistência encetada pelo Ministério da Saúde.

Algumas informações devem ser levadas em conta nas nossas reflexões: 1. Em Goiás, 61% dos crimes dolosos contra a vida estão relacionados a drogas (TJ-GO); 2. A população carcerária brasileira é de mais de 500.000 pessoas, sendo que mais de 60.000 são doentes mentais graves (JGV Taborda); 3. Dependência química é uma doença crônica grave e não somente um problema social ou psicológico; 4. Um terço dos dependentes do crack tem doença mental em comorbidade (R. Laranjeira); 5. Dois terços dos dependentes do crack que procuram ajuda têm doença mental em comorbidade (R. Laranjeira); 6. As ações na área de saúde nas três esferas de governo e entre os diversos órgãos em uma mesma esfera não são integradas e não são harmônicas; 7. A política do Ministério da Saúde para a assistência a Dependentes Químicos é tímida e equivocada; 8. Os CAPS-AD são poucos e em sua grande maioria ineficientes; 9. Os serviços comunitários, geralmente religiosos, são em maior número, mas têm dificuldades para se manter e carecem de base científica; 10. Os serviços de assistência ao dependente químico com qualidade são poucos e geralmente privados e universitários.

Recentemente, em São Paulo, foram disponibilizados leitos psiquiátricos para receber compulsoriamente dependentes de crack. No primeiro dia esgotaram-se as vagas com pacientes que voluntariamente procuraram o tratamento. Ficou a mensagem do povo para os governantes: precisamos de serviços médicos de qualidade.

Políticas públicas de combate ao crack pressupõem integração de esforços, devem ser fundamentadas em evidências e devem ter seus resultados avaliados. O dependente de crack, às mais das vezes, é portador de doença mental e necessita de atendimento médico. Entretanto, cabe avaliarmos se a internação compulsória como política de Estado é a mais adequada para o momento.

Se a internação compulsória for o início de um processo de tratamento para aqueles que precisam e não têm, estaremos diante de uma correta iniciativa do Governo. Se a motivação é a saúde da população, trata-se de uma excelente ação do Estado que, inclusive, não deve ficar restrita aos dependentes químicos de crack, mas também alcançar os dependentes de outras drogas e os pacientes com outros transtornos mentais.

Assim, a internação compulsória seria apenas uma porta de entrada de um programa terapêutico de maior duração e complexidade, como acontece em países desenvolvidos e no setor privado brasileiro. Não podemos esquecer que, como preconiza a Lei 10.216/2001, toda e qualquer internação requer indicação médica, seja ela voluntária, involuntária ou compulsória.

A meta do Estado deve ser acompanhamento pleno de dependentes químicos e de qualquer outro doente mental, pelo tempo que necessitarem. Não sendo observados esses princípios, a iniciativa não passaria de uma limpeza das ruas.

Ficam as perguntas: Quais os programas terapêuticos serão utilizados? Como será feito o acompanhamento dos dependentes do crack retirados das ruas?

*Salomão Rodrigues Filho é médico psiquiatra e presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás.