Indenização por abandono afetivo: monetização do afeto ou reconhecimento do dever de cuidado?

*Amanda de Paula Chaves

Inicialmente, cumpre-se esclarecer que o exercício do poder familiar não se restringe à criação, educação, assistência e representação, esse poder também deve ser entendido como a obrigação dos pais de dar aos filhos sentimentos positivos, tais como afeto e amor, contribuindo dessa forma, para o desenvolvimento sadio da criança.

O ordenamento pátrio é farto ao garantir o melhor interesse da criança em todas as suas esferas. Nesse sentido, a Constituição Federal é expressa no seu artigo 229 ao delegar aos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, bem como, em seu artigo 227, ao incumbir à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, à convivência familiar e comunitária.

Em que pese ao respaldo jurídico voltada ao melhor interesse da criança, não há expressamente nenhuma penalidade acerca da falta de assistência afetiva. Por essa razão, surge a necessidade de se adequar os fundamentos da responsabilidade civil às peculiaridades do Direito de Família.

A partir disso, é possível desconstruir a ideia de que bastaria ao pai cumprir com o dever de prestar alimentos, esclarecendo, assim, que o sustento é apenas uma das parcelas da paternidade, havendo ainda os deveres de convívio, cuidado, criação e educação dos filhos.

Diante disso, cumpre-se elucidar que a educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, o amor e o carinho, trata-se de uma função não só de ordem moral, mas também de cunho legal.

Isso porque, a afetividade no campo jurídico ultrapassa a seara do sentimento, alcançando o patamar da responsabilidade, de modo que o afeto se torna uma obrigação jurídica.

O dever jurídico de exercer a parentalidade de modo responsável compreende a obrigação de conferir ao filho uma firme referência parental, garantindo o adequado desenvolvimento psíquico e físico da criança, a fim de criar condições para que a prole autoafirme sua personalidade perante a sociedade, pois, somente assim é possível concretizar os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, o descompromisso com o exercício da paternidade configura ato ilícito, o qual suscita consequências severas no psicológico do indivíduo, pois o abandono afetivo constrói pessoas inseguras e com sentimento de rejeição, norteadas pela autodesvalorização e autodepreciação, sentimentos capazes de causar, inclusive, repercussões físicas, provocando carências incuráveis e vivências traumáticas. Tais prejuízos podem ser comprovados a partir de qualquer prova em direito admitida, sobretudo, a prova técnica configurando, assim, fato danoso.

Com efeito, entende-se que a ausência, o descaso e a rejeição do pai em relação ao filho violam a honra e a imagem da prole, por isso, não há óbice para que os pais sejam condenados a reparar os danos experimentados pelo filho, uma vez que esses abalos morais são quantificáveis como qualquer outra espécie de reparação moral indenizável.

Nesta senda, o Enunciado 08 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) é claro ao afirmar que “O abandono afetivo pode gerar direito à reparação pelo dano causado.”

Insta-se registrar, no entanto, que a reparação civil por abandono afetivo não representa a monetarização do afeto, mas sim demonstração de que os deveres dos pais não se restringem às feições patrimonialistas da família. A premissa maior dessa medida é demonstrar que o afeto é um valor moral dotado de juridicidade, sendo, portanto, algo que pode ser exigido juridicamente, não com a finalidade de compensar o amor, mas de reparar injustiças de cunho sentimental.

Como bem pontuado pela Ministra Nancy Andrighi “amar é uma faculdade, cuidar é um dever”. Desse modo, fica evidente que o intuito não é impor o amor dos pais pelos filhos, mas sim demonstrar que esse sentimento está intimamente relacionado ao dever de assistência e convivência familiar, tratando-se, portanto, um direito dos filhos.

O Superior Tribunal de Justiça atento aos anseios sociais e à amplitude do conceito da dignidade humana na vida dos indivíduos, se manifestou favorável ao pagamento de indenização por danos morais nos casos de abandono afetivo. Desse modo, é correto concluir que a reparação de danos em virtude do abandono afetivo possui fundamento jurídico próprio, bem como causa específica e autônoma, qual seja, o descumprimento, pelos pais, do dever jurídico de exercer a parentalidade de maneira responsável. Veja-se:

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. PEDIDO JURIDICAMENTE POSSÍVEL. APLICAÇÃO DAS REGRAS DE RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES FAMILIARES. OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS E PERDA DO PODER FAMILIAR. DEVER DE ASSISTÊNCIA MATERIAL E PROTEÇÃO À INTEGRIDADE DA CRIANÇA QUE NÃO EXCLUEM A POSSIBILIDADE DA REPARAÇÃO DE DANOS. RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DOS PAIS. PRESSUPOSTOS. AÇÃO OU OMISSÃO RELEVANTE QUE REPRESENTE VIOLAÇÃO AO DEVER DE CUIDADO. EXISTÊNCIA DO DANO MATERIAL OU MORAL. NEXO DE CAUSALIDADE. REQUISITOS PREENCHIDOS NA HIPÓTESE. CONDENAÇÃO A REPARAR DANOS MORAIS. CUSTEIO DE SESSÕES DE PSICOTERAPIA. DANO MATERIAL OBJETO DE TRANSAÇÃO NA AÇÃO DE ALIMENTOS. INVIABILIDADE DA DISCUSSÃO NESTA AÇÃO.

[…]

4- A possibilidade de os pais serem condenados a reparar os danos morais causados pelo abandono afetivo do filho, ainda que em caráter excepcional, decorre do fato de essa espécie de condenação não ser afastada pela obrigação de prestar alimentos e nem tampouco pela perda do poder familiar, na medida em que essa reparação possui fundamento jurídico próprio, bem como causa específica e autônoma, que é o descumprimento, pelos pais, do dever jurídico de exercer a parentalidade de maneira responsável. 5- O dever jurídico de exercer a parentalidade de modo responsável compreende a obrigação de conferir ao filho uma firme referência parental, de modo a propiciar o seu adequado desenvolvimento mental, psíquico e de personalidade, sempre com vistas a não apenas observar, mas efetivamente concretizar os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana, de modo que, se de sua inobservância, resultarem traumas, lesões ou prejuízos perceptíveis na criança ou adolescente, não haverá óbice para que os pais sejam condenados a reparar os danos experimentados pelo filho

[…]

(STJ – REsp: 1887697 RJ 2019/0290679-8, Relator: Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 21/09/2021, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/09/2021)

Depreende-se, portanto, que existe um núcleo irretocável de cuidados parentais que garantam aos filhos condições mínimas para uma adequada formação psicológica. Por conseguinte, entende-se que o convívio familiar e o afeto são direitos natos dos filhos, e não mera faculdade dos pais.

Cumpre-se esclarecer, no entanto, que existem casos em que o convívio familiar é impossibilitado por culpa exclusiva de um dos genitores ou por motivos de força maior como, por exemplo, os pais que residem em cidades distintas dos filhos. Nessas situações não é possível subsidiar o pedido de indenização, uma vez que tais circunstâncias, isoladamente, não configuram a prática de ato ilícito, sendo necessário comprovar a motivação do distanciamento. Dessarte, caso os pais sejam privados de cuidarem de seus filhos, não haverá a configuração do abandono afetivo.

Veja-se que a análise fática é mais complexa do que a mera constatação de que pai está ou não presente na vida do filho. A discussão paira sobre a intenção dos pais em promover ações voluntárias em favor da prole, a fim de verificar se os genitores desenvolvem condições para que a criança se autoafirme no meio social.

Ante o exposto, infere-se que, em regra, uma vez presentes os pressupostos da responsabilidade civil, admite-se a condenação dos pais a reparar os danos morais causados aos filhos em razão do abandono afetivo, com isso, objetiva-se não requisitar o amor dos pais, mas sim demonstrar que responsabilidade decorrente da parentalidade ultrapassa a seara material, alcançando valores éticos e morais que somente a convivência é capaz de proporcionar.

*Amanda de Paula Chaves é assistente jurídica no GMPR – Gonçalves, Macedo, Paiva e Rassi Advogados.