Heteroidentificação em concursos públicos: entenda como funciona e veja como recorrer de uma reprovação injusta

Maria Laura Álvares*

O procedimento de heteroidentificação foi criado para garantir que as cotas raciais sejam corretamente aplicadas em seleções públicas.

A reserva de vagas para candidatos pretos e pardos em concursos públicos tem como objetivo a inclusão e reparação histórica no Brasil. E a etapa de heteroidentificação é um dos mecanismos que visa garantir oportunidades equitativas para todos.

No entanto, muitos candidatos que sempre se identificaram como pardos e sempre foram reconhecidos como pardos pela sociedade acabam sendo reprovados nesse processo, gerando dúvidas e insegurança sobre seus direitos e possíveis recursos.

Então, se você se autodeclara preto ou pardo e foi reprovado no procedimento de heteroidentificação de alguma seleção pública, saiba que é possível reverter a sua eliminação por meio de uma ação judicial.

1  – O que é e como funciona o procedimento de heteroidentificação?

O procedimento de heteroidentificação em seleções públicas é um processo utilizado para verificar a autodeclaração de candidatos que se autodenominam pretos ou pardos visando evitar fraudes, assegurando que as vagas reservadas para cotas raciais sejam ocupadas por indivíduos realmente pretos ou pardos.

Essa etapa de verificação surgiu devido ao aumento de fraudes em cotas raciais, em que candidatos se autodeclaravam negros, mesmo sem possuir as características fe- notípicas correspondentes, apenas para serem beneficiados nos concursos.

Os candidatos que concorrem às cotas raciais são avaliados por uma comissão de heteroidentificação que analisam aspectos fenotípicos como cor da pele, textura dos cabelos, lábios e nariz.

A depender do edital, a avaliação poderá ser presencial ou por meio de vídeo gravado pelo candidato. E, após a avaliação, o candidato poderá ser enquadrado ou não como negro.

2  – Presunção de veracidade da autodeclaração

A Lei n. 12.990/14 (lei de cotas raciais para concursos públicos na esfera federal) estabelece em seu art. 2º que o critério para concorrer às vagas reservadas para pessoas pretas ou pardas é a autodeclaração no momento da inscrição para o concurso público:

Art. 2º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

Para o IBGE, a regra também é a autodeclaração, ou seja, quando questionada, a pessoa pode se declarar como preta, parda, branca, amarela ou indígena. Assim, oficialmente, a pessoa pertence à raça/cor que diz pertencer.

Assim, a autodeclaração é presumida verdadeira, a menos que haja dúvida razoável devidamente fundamentada no parecer da comissão de heteroidentificação.

Pode acontecer de a comissão examinadora do concurso não apresentar qualquer motivação/justificativa aos candidatos reprovados no procedimento de heteroidentificação. Um exemplo foi a banca Cesgranrio que reprovou inúmeros candidatos no pro- cedimento de heteroidentificação do Concurso Nacional Unificado sem apresentar qualquer justificativa.

Essa postura adotada pela banca em não justificar o “não enquadramento” dos candidatos prejudica, inclusive, o exercício do contraditório e da ampla defesa, pois, o candidato que interpõe recurso administrativo o faz “às cegas”, sem saber a razão pela qual não foi enquadrado como candidato negro.

E quando a banca justifica o não enquadramento do candidato, nem sempre é de forma clara e objetiva. Essa subjetividade na avaliação pode gerar uma reprovação injusta do candidato, mesmo que atenda aos critérios das cotas raciais.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já julgou a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 41) da Lei n. 12.990/2014, que estabelece a reserva de vagas para candidatos negros e pardos em concursos públicos, declarando não apenas a constitucionalidade da referida norma, mas também estabelecendo balizas para a avaliação fenotípica do candidato cotista, vejamos:

“Em segundo lugar, devem ser garantidos os direitos ao contraditório e à ampla defesa, caso se entenda pela exclusão do candidato. Por fim, deve- se ter bastante cautela nos casos que se enquadrem em zonas cinzentas. Nas zonas de certeza positiva e nas zonas de certeza negativa sobre a cor (branca ou negra) do candidato, não haverá maiores problemas. Porém, quando houver dúvida razoável sobre o seu fe- nótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial.” (STF – ADC 41 – Min. Rel. Luís Roberto Barroso)

Do trecho acima, podemos extrair que, na avaliação fenotípica:

  1. Deve ser respeitado o contraditório e ampla defesa;
  2. Logo, as decisões administrativas devem ser devidamente motivadas;
  3. Para candidatos das zonas cinzentas (pardos) deve haver bastante cautela;
  4. E quando houver dúvida quanto ao fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração.

Nota-se que uma das cautelas apresentadas pelo Supremo é quanto à categoria dos pardos “Zona Cinzenta”, justamente pela maior dificuldade de classificação considerando a miscigenação predominante no Brasil, e estabelece que, além da devida fundamentação, havendo dúvidas quanto ao fenótipo deve prevalecer o critério da autodeclaração.

É por isso que, ainda que seja necessária a associação da autodeclaração a me- canismos de heteroidentificação, para fins de concorrência pelas vagas reservadas nos termos Lei n. 12.990/2014, é preciso ter alguns cuidados. Em primeiro lugar, o mecanismo escolhido para controlar fraudes deve sempre ser idealizado e implementado de modo a respeitar a dignidade da pessoa humana dos candidatos. Em segundo lugar, de- vem ser garantidos os direitos ao contraditório e à ampla defesa, caso se entenda pela exclusão do candidato. Por fim, deve-se ter bastante cautela nos casos que se enquadrem em zonas cinzentas. Nas zonas de certeza positiva e nas zonas de certeza negativa sobre a cor (branca ou parda) do candidato, não haverá maiores problemas. Porém, quando houver dúvida razoável sobre o seu fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial.

É ilegal, portanto, o parecer emitido pela comissão de verificação que, de forma sumária, conclua apenas pelo não enquadramento do candidato, sem qualquer fundamentação e sem levar em consideração a autodeclaração.

Diante da subjetividade que submete à definição do grupo racial de uma pessoa por uma comissão avaliadora e havendo dúvida quanto a isso, tem-se que a presunção de veracidade da autodeclaração deve prevalecer.

Além disso, se o candidato foi reconhecido como pardo a vida toda, tanto por si como pela sociedade, detém ascendência parda ou preta e coleciona registros foto- gráficos que evidenciam seu fenótipo, como a banca examinadora gostaria que ele se declarasse? Se não for considerado pardo, não se encaixará em nenhuma outra etnia, já que evidentemente não é branco. E, caso o “não enquadramento” seja mantido, o candidato terá sua etnia deslegitimada.

Em situações assim, o candidato pode e deve recorrer, seja por meio de um recurso administrativo ou por ação judicial.

Notadamente, o candidato não perdeu traços ou alterou a cor da sua pele ao longo dos anos. A decisão da banca deve, no mínimo, indicar quais aspectos objetiva- mente são analisados, bem como esclarecer quais o candidato não apresenta e quais ele sim apresenta, para possibilitar o exercício adequado da ampla defesa e do contraditório.

3  – O que fazer para reverter a reprovação na etapa de heteroidentificação?

Se você agiu de boa-fé e considera que realmente é pardo ou preto, há uma grande chance de reverter a sua reprovação.

O primeiro passo seria interpor um recurso administrativo diante do resultado preliminar da heteroidentificação. Se a banca examinadora indeferir o recurso, mantendo a reprovação, a única forma de reverter passa a ser por meio de uma ação judicial.

Ingressar com uma ação judicial, conduzida por um advogado especialista em casos de cotas raciais permite reunir toda a documentação necessária para comprovar que o candidato é, de fato, preto ou pardo.

Essa documentação pode incluir fotos do candidato e de seus familiares, certidão de nascimento, aprovação em outras seleções públicas como cotista, e qualquer outro documento que evidencie a identificação racial.

Na ação judicial, deve-se detalhar as características como cor e textura do cabelo, cor dos olhos, formato da boca, formato do nariz e tom de pele.

Além disso, caso o candidato possua, um atestado dermatológico com a classificação do seu tom de pele na escala Fitzpatrick e/ou um laudo antropológico, também podem ser utilizados como prova.

Durante o processo, também é possível recorrer à perícia médica judicial, realizada por um dermatologista de confiança do juiz, que emitirá um laudo claro sobre a identificação racial da pessoa.

Portanto, se você agiu de boa-fé e se considera pardo ou preto, é fundamental buscar a orientação de um advogado especializado na área, que poderá indicar o melhor caminho para reverter essa situação e permitir que você volte a concorrer à tão sonhada vaga.

4  – Eliminação por ausência no procedimento de heteroidentificação

Alguns editais trazem a previsão de que o candidato que não comparecer ao procedimento de heteroidentificação será eliminado do concurso. Isso aconteceu, por exemplo, em dois grandes concursos recentemente, o Concurso Nacional Unificado e o Concurso Nacional Unificado da Justiça Eleitoral.

Trata-se, no entanto, de uma eliminação arbitrária e ilegal, uma vez que a Lei n. 12.990/2014 estabelece em seu art. 3º que os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso.

Ora, da mesma forma que um candidato que participou do procedimento de heteroidentificação e não foi enquadrado pela banca como pessoa negra pode continuar no certame concorrendo na ampla concorrência, o candidato que não compareceu ao procedimento de heteroidentificação deve continuar no concurso concorrendo na ampla concorrência também, sendo eliminado apenas da lista de candidatos negros.

5  – Conclusão

Se você se considera preto ou pardo e foi reprovado na etapa de heteroidentificação ou se foi eliminado do concurso por não ter comparecido ao procedimento de heteroidentificação, procure um advogado especialista em concursos, ele saberá interpretar o seu caso e apresentar as provas corretas na justiça para, assim, reverter a sua reprovação.

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*Maria Laura Álvares é advogada inscrita na OAB/GO 41.209, graduada pela PUC/GO em 2011 e pós-graduada em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Sócia do escritório Álvares Advocacia, atua de forma especializada em demandas de concursos e servidores públicos, dando suporte necessário durante todo o certame, seja pela análise de editais, esclarecimentos, impugnações administrativas e a atuação judicial para defender direitos e garantir a nomeação e posse de candidatos injustiçados, além de ajudar servidores públicos diante das injustiças pratica- das pelos órgãos públicos.