Fraude à execução na era da informação: criptomoedas e ocultação patrimonial

Leandro Marmo

A lei dispõe que o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com os seus bens presentes e futuros. O grande desafio que o credor sempre teve foi a localização dos bens que compõe o patrimônio do devedor.

A identificação de bens imóveis de propriedade do devedor, em regra, sempre foi de maior facilidade, por ser um fato notório, muitas vezes de conhecimento público, e diante da possibilidade do próprio credor diligenciar no Cartório de Registro de Imóveis, pesquisar e identificar tais bens.

A busca de outros bens do devedor, como bens móveis e recursos financeiros, era realizado, em regra, através de expedição de ofícios, os quais demoravam meses para serem cumpridos, e facilitavam que o devedor desviasse os recursos antes mesmo que os ofícios pudessem chegar aos órgãos ou instituições financeiras as quais eram destinados. Para dar mais eficiência e efetividade na busca e constrição de bens do devedor, no ano 2.000 foi criado o sistema BacenJud, em convênio entre o Banco Central do Brasil e o Poder Judiciário, o qual permite ao magistrado a rápida solicitação e obtenção de resposta junto as instituições financeiras quanto a existência e bloqueio de dinheiro depositado em conta corrente ou poupança do devedor. Já em 2007 foi criado o sistema InfoJud, que é uma plataforma integrada entre o Poder Judiciário e a Receita Federal e viabiliza a localização de bens, notadamente imóveis, de propriedade do devedor e, em 2008 criou-se o RenaJud, o qual é interligado com todos os DETRAN’S e permite a busca e identificação de veículos em nome do devedor, a inserção de restrição para impedir a transferência do veículo, expedição de novo licenciamento, impedir a circulação e o registro da existência de penhora.

Todas essas plataformas a disposição do Poder Judiciário e do credor, são excelentes para auxiliar na localização e constrição de bens do devedor. Tanto o é, que desde que foram criadas já permitiram a satisfação de bilhões de reais de créditos vencidos e não pagos. Ocorre que, verificamos aqui, como em inúmeras outras áreas do direito a existência de um grande delay, entre a inovação tecnológica, as novas necessidades socioeconômicas e o tempo de resposta na criação de adequadas “soluções jurídicas”.

Prova do que denominaremos de inércia jurídica-tecnológica, está no fato de que somente recentemente, o Banco Central do Brasil expediu o Comunicado n° 31.506, publicado no dia 21 de dezembro de 2.017, através do qual incluiu as corretoras, distribuidoras de títulos e valores mobiliários e financeiras no sistema de penhora on-line – BacenJud. Somente a partir de agora será possível através da referida plataforma a pesquisa e penhora através do referido sistema de ativos de renda fixa pública e privada, tais como títulos públicos, tesouro direto, certificados de depósitos bancários (CDBs), Letras de Crédito Imobiliário (LCI), Letras de Crédito do Agronegócio (LCA) e outros. Bem como será possível a penhora de títulos de renda variável, como investimento em ações na Bolsa de Valores.

A penhora dos ativos financeiros a que nos referimos no parágrafo anterior, há muitos anos já era possível e de fato já vinha sendo realizado, todavia, necessário seria que o credor de algum modo já tivesse conhecimento prévio da efetiva existência de algum desses ativos financeiros, quer seja por meios próprios ou através de informações que eventualmente poderiam ser obtidas através de consulta ao INFOJUD. Todavia, tais mecanismos limitavam de sobremaneira a capacidade do credor de conseguir localizar tais ativos e de conseguir realizar uma constrição sobre eles, antes mesmo do devedor tentar transferi-los com finalidade de fraudar à execução.

O que se nota claramente, é que houve um enorme lapso temporal, entre a criação do BACENJUD, e a inserção dessas novas ferramentas de penhora de ativos financeiros, o que já poderia e deveria estar sendo realizada há muitos anos. Diante de tal análise, a questão que trazemos a reflexão é: diante da criação das criptomoedas, as denominadas moedas virtuais, qual será o delay, até que sejam criadas ferramentas efetivas para se conseguir pesquisar e apreender ativos virtuais do devedor?

As moedas virtuais surgiram em 2.012 e no Brasil, o investimento nas mesmas, teve um crescimento exponencial em curto espaço de tempo, já temos mais de 1,5 milhão de pessoas investindo em moedas virtuais, conquanto o número de investidores em ativos financeiros na BM&FBOVESPA, é de apenas 600 mil, sendo que essa última foi fundada, em sua forma originária, em 1.890.

Já temos hoje bilhões de reais circulando mensalmente em moedas virtuais no Brasil, todavia, não existe nenhum sistema minimamente efetivo para pesquisa e penhora de tais ativos, o que por certo se tornará – ou já se tornou, uma grande alternativa a fraude à execução, diante da facilidade na ocultação do patrimônio.

Quanto à possibilidade de penhora de moedas virtuais, o Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu no julgamento do Agravo de Instrumento 2202157-35.2017.8.26.0000, publicado no dia 21.11.2017 que é possível “por se tratar de bem imaterial com conteúdo patrimonial”. No caso em comento, o exequente havia solicitado o envio de ofício para duas maiores casas de câmbio solicitando informação quanto a possíveis movimentações do devedor. Todavia, o TJ-SP negou o pedido de expedição de ofício para pesquisa e constrição de tais ativos, realizado pelo exequente, pelo fundamento de que necessário seria que o credor demonstrasse ao menos indícios que o devedor tivesse de fato investimento em alguma moeda virtual e em qual casa de câmbio. Referido entendimento, ao nosso ver, é extremamente equivocado e poderá tornar ainda mais difícil a localização e constrição de tais ativos. Ademais, analogicamente, quando um credor solicita que seja realizado pelo magistrado consulta de ativos financeiros em nome do devedor em contas bancárias através do BacenJud, não lhe é exigido que informe previamente a existência de algum indício da existência de tais ativos e em qual instituição financeira.

Com a nova ferramenta do BacenJud de pesquisa de ações na bolsa de valores, por exemplo, não será por certo, exigido que o exequente apresente qualquer indício da existência de tais ativos, presumindo-se que poderá tê-lo. Se hoje, comparando-se os investidores em moedas virtuais, com os investidores na Bolsa de Valores, já se tem o dobro de investidores no primeiro, com muito mais razão se poderá presumir que um devedor possa ter, teoricamente, algum investimento em moedas virtuais, não sendo exigível a prévia demonstração de qualquer indício da existência do mesmo. O que se eventualmente houver, poderá ser muito melhor e mais eficiente, mas não podendo ser considerado um requisito.

Dentre as dificuldades em se pesquisar e penhorar moedas virtuais, tem-se que, para adquirir moedas virtuais, não é necessário que seja através de um intermediador como uma casa de câmbio, fato este que, por si só dificulta ou quase impossibilita a localização desses ativos. Se for utilizada uma casa de câmbio, será necessário transferir o dinheiro para ela, e após o devedor poderá adquirir moedas virtuais e deixá-las “custodiadas” em sua wallet, se eventualmente for realizada uma pesquisa de ativos financeiros via BacenJud, o referido ativo não será localizado, porque as corretoras de câmbio não são cadastradas e nem conveniadas no Banco Central do Brasil. Igualmente não serão localizados tais ativos financeiros, ainda que o dinheiro fique “parado”, sem adquirir nenhuma moeda virtual.

Tem-se ainda que, para penhorar uma moeda virtual, o ideal é que o exequente saiba aonde ela está depositada, todavia, tal informação é obscura e difícil conhecimento, posto que atualmente tem sido admitido até mesmo o depósito em espécie diretamente na casa de câmbio que já estão tendo pontos físicos de atendimento, e admitindo não só transferências eletrônicas de dinheiro. As criptomoedas podem estar custodiadas qualquer lugar: “corretoras nacionais ou estrangeiras; softwares (aplicativos); hardwares (por exemplo, pen drives ou HDs externos); e até em paper wallets, isto é, carteiras físicas (sequências de caracteres impressas em papel) mantidas sem qualquer acesso à internet”[1].

Em princípio, a única alternativa que vislumbramos, para pesquisa e constrição de ativos virtuais, será a expedição de ofício de forma eletrônica – art. 188 e 193 do NCPC, via e-mail, a todas corretoras de câmbio de moedas virtuais existentes no Brasil, ou ao menos às principais, cujos dados de identificação e de contato de cada corretora deverá ser fornecido ao magistrado pelo exequente, junto de seu requerimento. Através deste mecanismo poderá se alcançar a penhora apenas dos ativos custodiados em casas de câmbio, o que é frágil e insuficiente, sendo imprescindível a criação e com urgência de ferramentas tecnológicas mais adequadas e eficientes a disposição do Poder Judiciário e do exequente, assim como o BacenJud, RenaJud e Infojud.

Diante das considerações acima, concluímos que na era da informação, com o surgimento de inovações tecnológicas com mudanças drásticas e exponenciais nas relações sociais estão surgindo alternativas mais acessíveis, complexas e baratas para a ocultação patrimonial e eventualmente de fraude à execução, ou a credores, neste contexto as soluções jurídicas-tecnológicas necessárias a auxiliar na efetiva satisfação do crédito dos credores, deverão surgir em um espaço de tempo muito inferior ao que temos acompanhado, sendo absolutamente insustentável que as soluções de novos problemas, sejam dadas com o mesmo delay que historicamente acompanhamos.

[1] https://www.conjur.com.br/2017-dez-07/marcelo-lauar-execucao-penhora-bitcoins-improvavel

*Leandro Marmo é especialista em defesas no processo de execução, pós-graduado em Processo Civil pelo IDP-Brasília e sócio do escritório João Domingos Advogados Associados