Direito de ir e vir: quando a calçada vira obstáculo e a cidade viola a constituição

Rayff Machado*

Há alguns anos, tomei uma decisão que, à primeira vista, parecia ousada, mas que, com o tempo, se revelou uma escolha inteligente, econômica e surpreendentemente libertadora: troquei meu carro por um motorista acessado via aplicativos de transporte.

Deixei de perder dinheiro com combustível, seguro, manutenção, IPVA e depreciação, e passei a investir esses recursos em algo que, de fato, me traria melhores retornos. O que parecia apenas uma decisão financeira acabou se tornando também um estilo de vida.

O mais curioso é que, diferente do que muitos imaginam, viver sem carro não significa isolamento. Pelo contrário, é um estilo de vida cheio de encontros, conversas inesperadas e histórias que a solidão do carro próprio jamais proporcionaria. Passei a compartilhar caronas com amigos, conhecer trajetos diferentes, descobrir novos lugares e perceber a cidade sob outra perspectiva — mais humana, mais viva e, ao mesmo tempo, mais desafiadora.

🚲 O patinete como solução e a calçada como problema

Para aprimorar essa mobilidade alternativa, recentemente adicionei um patinete à minha rotina. Ele resolve perfeitamente aquelas distâncias que são longas demais para ir a pé, mas curtas e inviáveis para um carro ou transporte por aplicativo.

Tudo ia muito bem, até que entrei em confronto com um inimigo silencioso, onipresente e aparentemente ignorado pelo planejamento urbano: o chão da cidade. Buracos, desníveis, postes mal posicionados, calçadas inexistentes ou completamente destruídas transformaram um simples trajeto em uma gincana de obstáculos, desafiando minha segurança e, mais grave, revelando uma realidade jurídica e social profundamente negligenciada.

🚸 A discrepância entre o direito de ir e vir e a realidade das cidades brasileiras

A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso XV, é clara e taxativa:

“É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.”

Não se trata de um direito qualquer. Estamos falando de uma cláusula pétrea, ou seja, um direito fundamental, inviolável e protegido contra qualquer forma de supressão, nem mesmo uma emenda constitucional pode revogá-lo.

Porém, a realidade imposta pelas cidades brasileiras parece ignorar solenemente essa garantia. Para quem escolhe, ou depende, de se locomover a pé, de bicicleta, patinete ou cadeira de rodas, o direito de ir e vir é sistematicamente violado, não por leis, mas por calçadas esburacadas, rampas inexistentes, degraus, postes no meio do caminho, falta de sinalização e ausência de qualquer padrão construtivo.

🚧 A cidade hostil: Uma violação silenciosa

É fato que o modelo urbano brasileiro prioriza o transporte individual motorizado. Basta observar como bilhões são investidos anualmente na construção e manutenção de vias para carros, enquanto calçadas, ciclovias e espaços públicos permanecem relegados ao esquecimento.

Essa negligência afronta diretamente:
* A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF);
* O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF);
* O princípio da acessibilidade e inclusão social (art. 227 da CF);
* O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015);
* O Código de Trânsito Brasileiro, que estabelece que o pedestre e o ciclista são os elementos mais frágeis e, portanto, prioritários na hierarquia do trânsito (art. 29, §2º da Lei nº 9.503/1997);
* O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que impõe ao poder público municipal o dever de garantir cidades inclusivas, seguras, acessíveis e sustentáveis.

⚖ Quando a omissão vira ilegalidade constitucional

A omissão dos municípios e dos governos na construção, manutenção e fiscalização de calçadas, ciclovias e espaços urbanos acessíveis não é um simples descuido administrativo. É uma violação direta de direitos fundamentais.

Estamos falando de um modelo urbano que:
* Exclui idosos, pessoas com deficiência, crianças, ciclistas e qualquer cidadão fora do carro;
* Impede o acesso pleno à cidade, à educação, ao trabalho e à vida comunitária;
* Reproduz desigualdades e reforça um ciclo de exclusão social.

Na prática, onde não há calçada, não há cidadania plena.

🌍 Mobilidade não é luxo, é direito constitucional

Enquanto se discute a modernização das cidades, a adoção de carros elétricos e a implementação de tecnologias urbanas, esquecemos do mais básico dos direitos urbanos: o direito de caminhar com segurança.

Não se trata de um luxo. É:
* Uma questão de dignidade humana;
* Uma exigência constitucional;
* Uma estratégia para enfrentar a crise climática, reduzir a poluição e melhorar a qualidade de vida nas cidades.

Sem calçadas acessíveis, não há inclusão. Sem inclusão, não há cidade justa.

📣 Conclusão: Andar pela cidade é um ato político

Ao escolher viver sem carro, percebi que essa não é apenas uma decisão financeira ou ecológica. É também um ato político, uma forma de pressionar, de forma silenciosa, os gestores públicos a investirem em infraestrutura urbana mais justa, acessível e inclusiva.

Por isso, convido você, leitor, a experimentar esse estilo de vida. Comece, se possível, substituindo alguns deslocamentos de carro por caminhadas, bicicletas, transporte coletivo ou patinetes. Além dos benefícios para sua saúde, para o meio ambiente e para seu bolso, há um impacto social poderoso: quanto mais pessoas aderirem à mobilidade ativa, mais forte será a pressão para que os governos cumpram seu dever constitucional de garantir o direito de ir e vir — não apenas sobre quatro rodas, mas sobre dois pés.

Porque se a Constituição garante o direito de ir e vir, as cidades precisam garantir o caminho.

*Rayff Machado é advogada, mentora e especialista em marcas e propriedade intelectual e CEO do escritório Machado & Pereira Advogados.