A 5ª Turma do STJ, acertadamente, julgando um caso de um condenado, como incurso nas penas dos artigos 157, caput; 329, caput; e 331, todos do Código Penal, entendeu que o crime tipificado ao teor do art. 331, do Código Penal, qual seja, desacato não constitui conduta a ser reprimida pelo direito penal à luz da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário.
O TJ-SP, ao julgar a apelação interposta pela Defensoria Pública, no caso acima mencionado, pautando-se pelo que está posto, na lei penal, entendeu que não há incompatibilidadealguma do dispositivo incriminador em questão com o disposto no art. 13, do Pacto São José da Costa Rica, ao argumento de que a abolição de qualquer tipo penal somente poderia ocorrer por meio de lei e, ainda, que o tratado não é incompatível com o crime de desacato, pois a garantia da liberdade de expressão não autoriza a ofensa gratuita dirigidas a servidores públicos.
É cediço o fato de que, em nenhuma hipótese, se autoriza a ofensa dirigida a servidores
públicos, todavia, o entendimento pela descriminalização do desacato não tem esse escopo. Ao contrário, a honra subjetiva e objetiva dos funcionários públicos serão devidamente tuteladas pelos tipos penais que preveem os crimes contra a honra, com a incidência, ainda, da causa de aumento de pena relativa à qualidade da vítima de funcionária pública (art. 141, II, CP).
O que se busca com a decisão não é legalizar a ofensa aos servidores, mas, tão somente
colocá-los em pé de igualdade com aqueles que não possuem tal proteção específica, sendo então punida a ofensa à honra dos funcionários do Estado pelos mesmos tipos penais que protegem a honra dos particulares.
Os ministros entenderam que não há que se falar em prevalência da liberdade de
expressão sobre a honra dos servidores, pois esta continuará devidamente protegida, mas de forma igualitária à proteção dispensada aos particulares. Além disso, refutou-se a tese de que somente lei penal pode revogar outra lei penal.
Não se trata de abolitio criminis (revogação), mas, sim, de invalidação de uma normainfra legal, por incompatibilidade com norma de hierarquia superior, consistente num tratado de direito internacional sobre matéria de direitos humanos, conforme previsão expressa do art. 5º, §3º, da Constituição Federal.
Até aqui entende-se a divergência entre o julgamento do TJ-SP, não dando provimento à
apelação interposta pela Defensoria Pública, e o julgamento do Recurso Especial da 5ª Turma do STJ.
Há quem argumente, ainda, que o tipo penal do art. 331, do CP, não busca, precipuamente,
proteger a honra do servidor público. Ao contrário, sendo crime pluriofensivo, possui o escopo de tutelar, principalmente, o prestígio (probidade ou respeitabilidade) da Administração Pública, sendo assim, segundo essa posição, carece de fundamento a invalidação de tal dispositivo, pois não basta que a honra do funcionário da Administração continue sendo protegida, tendo em vista o objetivo principal do tipo penal.
Contudo, os agentes estatais não podem ser vistos como superiores aos particulares, sob
o argumento de que possuem o múnus público. Não se admite, em um Estado Democrático de
Direito, que prevaleça a tese de que o Estado possui uma relação hierarquizada com os
particulares, como se estes fossem seus súditos, pensamento este que norteou a doutrina de segurança nacional da Ditadura Militar de 1.964. Deve-se preservar a igualdade entre particular e servidor.
Não é razoável coadunar-se com uma proteção específica a uma pessoa, em detrimento
de outras, pelo simples fato de que a primeira está a serviço da Administração Pública, posto que a própria razão de ser desta é o interesse público, consubstanciado nos direitos e garantias de toda a coletividade.
O prestígio da Administração Pública não será diminuído com a invalidação do tipo penal
previsto no art. 331, do Código Penal, visto que o mesmo será protegido, do mesmo modo, na pessoa do servidor público, o qual poderá acionar o poder judiciário, caso entenda que houve crime contra sua honra, oportunidade em que também estará sendo protegido o chamado prestígio da Administração Pública, visto que o servidor age em imputação ao ente estatal. De modo que,no momento em que aquele aciona o poder judiciário busca preservar tanto sua honra quanto o prestígio da Administração, ao passo em que incidirá a causa de aumento relativa à essa qualidade.
Em um Estado Democrático de Direito é essencial que os funcionários públicos estejam
abertos à crítica, às sugestões e até mesmo ao julgamento dos particulares. O que se busca é a ampliação desses direitos, limitando-se a censura e possibilitando o debate público, e não a diminuição dos direitos dos funcionários estatais.
Ao analisar a tese acima alinhavada, levantada pela Defensoria Pública do Estado de São
Paulo, pela qual esta buscava a anulação da sentença condenatória, ao argumento de que o juízo a quo prolatou-a sem indicar os motivos de fato e de direito da decisão (art. 381, III, CPP), ou seja, sem refutar expressamente a tese de que o tipo penal previsto no art. 331, do CP, afronta ao art. 13, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o TJ-SP entendeu que não era necessária tal análise, alegando ser prescindível a refutação de todas as teses da defesa para a condenação.
Isso mesmo! O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo alegou ser dispensável a
confrontação de uma lei penal com um tratado internacional sobre matérias de direitos humanos, ratificado pelo Brasil. O que, sabidamente, foi corrigido pela 5ª Turma do STJ, pautando-se na regra de hermenêutica pro homine, ou seja, pela prevalência da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos, constatando, por fim, que o tipo penal de desacato afronta os direitos fundamentais internacionalmente reconhecidos, em específico o direito à liberdade de pensamento e de expressão, previstos no art. 13, da CIDH.
Ademais, o art. 331, do Código Penal, também contraria normas constitucionais, previstas
no art. 5º, IV e IX; art. 220, caput, e §2º, todos estes da CF/88.
Isto posto, esperamos que o artigo 331, do Código Penal, seja declarado inválido pelo
STF, seja por controle de convencionalidade, por ser contrário à tratado internacional sobre direitos humanos, ou por meio de controle de constitucionalidade, por contrariar princípio constitucional.
*Gustavo Ribeiro Antonelli é advogado